Ultra-conservadores de hoje representam os que tramaram a condenação de Jesus, diz Leonardo Boff sobre ataques à Mangueira
Entrevista a Romolo Tesi
24 de janeiro de 2020 – UOL 24 de janeiro de 2020
Teólogo Leonardo Boff
Em mais um pré-Carnaval agitado, a Mangueira vem sendo alvo de ataques na internet por conta do enredo de 2020, sobre Jesus Cristo – “A verdade vos fará livre”. A ideia, saída da cabeça do carnavalesco Leandro Vieira, da volta de Jesus pelo Morro da Mangueira, próximo dos pobres e de minorias perseguidas, representado de diferentes formas – mulher, negro, índio e outros – incomodou segmentos cristãos mais conservadores. Até ameaça de ação na Justiça a escola já sofreu.
Para comentar o enredo, e toda repercussão, o Setor 1 ouviu o teólogo Leonardo Boff, um dos expoentes da Teologia da Libertação, que compartilha com a Mangueira de 2020 a visão de um Jesus Cristo mais humano – menos o Jesus Glorioso, mais o amigo e defensor dos pobres.
“Essa dimensão de Jesus foi especialmente enfatizada pela Teologia da Libertação, que tem nos oprimidos e nos crucificados na história seu ponto de partida e de ação. Ela quer, como Jesus, libertar toda esta gente. Essa é a mensagem clara do enredo da Mangueira”, declara o teólogo, que critica a reação mais extremista ao trabalho de Vieira: “os ultra-conservadores de hoje representam os que tramaram a liquidação de Jesus”.
“A Mangueira, com seu enredo e sua arte, fez uma pregação melhor do que qualquer uma, de padre, de bispo ou de cardeal”, afirma.
Veja a entrevista na íntegra:
O carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira, escreveu um enredo em que imagina a volta de Jesus Cristo ao mundo atual, mas renascendo na Mangueira, filho de pais pobres e vítima das mesmas mazelas que os favelados sofrem atualmente, mas sendo apresentado ao Carnaval como algo libertador em relação ao sofrimento. O que acha dessa forma de ver a figura de Jesus Cristo? Pela sinopse, é possível ver quais pontos de conexão com a Teologia da Libertação?
R: Uma vez que o Filho de Deus se fez homem e se encarnou, nunca mais abandonou a humanidade. Ele continua sempre vindo e fazendo-se presente na história, principalmente no pobre, no negro, no índio, na mulher marginalizada, nos homoafetivos, no menino e menina de rua. Sua paixão dolorosa continua até o fim dos tempos. Enquanto houver irmãos e irmãs dele sendo oprimidos e novamente crucificados, lá está ele sofrendo e sendo crucificado junto com eles. Isso é doutrina tradicional da Igreja. Não há erro nenhum naquilo que a Mangueira afirma. A questão é que a maioria dos cristãos esquece essa verdade. Vive uma fé só cultural e não de convicção. Então o samba da Mangueira expressa concreta e belamente esta venerável tradição. A Estação Primeira é a Nazaré de hoje. Jesus foi pobre bem concretizado hoje pelo “rosto negro, pelo sangue índio, pelo corpo de mulher marginalizada, “pelo moleque pelintra do Buraco Quente… é o Jesus da Gente”. Maria foi uma mulher simples do povo e assistiu com profunda dor de mãe à crucificação do Filho. Por isso ela encarna bem a “Mãe das Dores-Brasil”, pois milhões de brasileiros e de brasileiras estão sendo crucificados pela expulsão de suas casas, de suas terras, pela fome e pelas doenças. Essa dimensão de Jesus foi especialmente enfatizada pela Teologia da Libertação que tem nos oprimidos e nos crucificados na história seu ponto de partida e de ação. Ela quer como Jesus libertar toda esta gente. Essa é a mensagem clara do enredo da Mangueira. Quem não entender isso, perdeu a atualidade da mensagem da Mangueira.
A Mangueira tem sido alvo de ataques da extrema-direita e de certos segmentos cristãos depois do anúncio do enredo sobre Jesus Cristo. O instituto conservador Plinio Corrêa de Oliveira organizou um abaixo-assinado e estuda um ação na Justiça contra a escola de samba. O que acha dessa postura? Como se defender de ataques como esse?
R: Não devemos esquecer que Jesus não morreu porque caiu um caibro grosso na cabeça dele, já que era como o pai também carpinteiro, nem foi atropelado e morto por um camelo pesadão. Ele foi perseguido, caluniado e condenado à morte de cruz pelos religiosos da época, os sacerdotes, os doutores da lei, pelos piedosos como os fariseus. Os seguidores ultra-conservadores do citado por você, Plínio Corrêa de Oliveira representam hoje todos estes que tramaram a liquidação de Jesus. Condenando o enredo da Mangueira eles repetem a condenação de Jesus. A Mangueira está do lado de Jesus. Os ultra-conservadores de hoje estão do lado de Caifás, de Anás, de Judas e daqueles que gritavam:”Crucifica-o, crucifica-o”. Se houver algum processo, que seja feito contra estes ultra-conservadores que desconhecem a real fé cristã e por ofenderem a Jesus nos humilhados e ofendidos de nossa história atual.
Mangueira 2020
Tanto a sinopse quanto o samba da Mangueira dizem que Jesus são muitos. A sinopse tem o seguinte trecho: “Na cruz, ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que a igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a ialorixá que professa a fé apedrejada e vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do menor que você teme no momento em que ele lhe estende a mão nas calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de cabelo crespo. Queiram ou não queiram, o corpo andrógino que te causa estranheza, também é a extensão de seu corpo”. Essa forma de retratar Jesus tem causado reações mais irritadas e causado polêmica. Por que isso acontece? E o que acha dessa visão de Jesus, mais humano?
R: A sinopse é verdadeira, pois Jesus são de fato muitos, isto é, todos os que tiveram e estão tendo o mesmo destino de Jesus: os oprimidos pelos latifundiários, os explorados pelos patrões, as mulheres violentadas, as crianças estupradas, os LGBT discriminados. Todos estes atualizam a paixão de Jesus. Tem mais. Jesus como homem representa toda a humanidade, masculina e feminina. A Igreja ensina que Jesus assumiu tudo o que é humano. Se não tivesse assumido todo o humano, não teria sido o salvador e libertador de todos. Em outras palavras: se não tivesse assumido o lado feminino não teria redimido as mulheres que são mais da metade da humanidade. Sabemos hoje que em cada pessoa há a dimensão masculina (o animus) e simultaneamente a dimensão feminina (a anima). Todos sem exceção possuem estes dois lados. Por que estas duas dimensões, masculina e feminina, não estariam presentes também em Jesus? Lógico que estão, pois caso contrário, não seria plenamente humano.
Historicamente, o cristianismo e o Carnaval das escolas de samba sempre tiveram uma relação turbulenta. Há casos famosos, como o Cristo mendigo da Beija-Flor, em 1989, que desfilou coberto por força de ordem judicial. No entanto, nos últimos anos, houve alguma aproximação da igreja católica, que prefere acompanhar o desenvolvimento de enredos do que partir para o confronto. Como vê essa mudança? Acha que o samba pode servir para aproximar Jesus das pessoas?
R: Há uma parte da Igreja que prefere ver apenas o Jesus glorioso, o Rei do Universo, Jesus Deus que toca o mundo pecador apenas com a fímbria de seu manto. Essa visão é reducionista. Ele é Rei sim mas com coroa de espinhos e não de ouro e de joias, é Deus sim, mas um Deus encarnado em nossa miséria, que tem fome e sede, que se alegra e que chora pela morte de seu amigo Lázaro. A primeira visão é adulçorada e contrária â história narrada pelos evangelhos. Estes mostram um Jesus homem como nós que abraça as crianças, que se compadece dos doentes, que multiplica pães e peixes para atender um povo faminto, um Jesus que é amigo de duas mulheres queridas, Marta e Maria, que se irrita porque se fazem negócios dentro do lugar sagrado, derruba as mesas com as moedas e toma o chicote e escorraça esses vendilhões. Ele é plenamente humano em cada uma destas situações. Mas principalmente foi aquele que a Mangueira bem canta que “enxuga o suor de quem desce e sobre a ladeira, que vive um amor sem fronteiras, que se coloca na fileira contra a opressão”. Esse é o Jesus verdadeiro, aquele que é solidário, que suscita esperança “que brilha mais que a escuridão”. A Mangueira deixa uma mensagem importantíssima que vale para o mundo atual, tirada do projeto de Jesus: “Não tem futuro sem partilha”. A humanidade inteira está mal porque os ricos não partilham. 1% possui a riqueza dos 99% seguintes. Só os pobres partilham o pouco que têm. E dá uma indireta clara e bem merecida ao atual governante:” Não há Messias de arma na mão”. O enredo termina com o que é mais importante na fé cristã: O domingo da ressurreição. Diz isso poeticamente: “Num domingo verde-e-rosa ressurgi pro cordão da liberdade”. Liberdade e amor são os bens mais preciosos que temos. Para confirmar isso, Cristo ressuscitou. A Mangueira, com seu enredo e sua arte, fez uma pregação melhor do que qualquer uma, de padre, de bispo ou de cardeal. A Mangueira está na linha do Papa Francisco que repete: Jesus veio para nos ensinar a viver, o amor, a solidariedade, a esperança e o gesto de ternura.
Como o senhor pretende acompanhar a Mangueira?
R: Dizem por ai que gostariam que eu desfilasse na Escola da Mangueira. Seria uma espécie também de homenagem à Teologia da Libertação, subjacente no enredo. Eu penso assim: cada um deve conhecer o seu lugar. Acho que o lugar do teólogo, por mais que apoie os pobres, o povo e reconheça o alto valor do enredo da Mangueira, não é no desfile da escola mas, no máximo, na plateia no meio do povo, desfrutando da beleza e aplaudindo. Assisti da plateia a muitos carnavais. Agora no tramontar da vida e com alguns achaques, meu lugar é apoiar a Mangueira e felicitá-la por esse belo, profundo e verdadeiro enredo, dentro do melhor da fé cristã, fé radicalmente humana, fé libertadora.
ô que maravilha de entrevista! Obrigada, Leonardo Boff!!!
Concordo plenamente com Leonardo Boff. Enquanto tivermos pessoas pregando apenas um Jesus sacramental e encobrindo o verdadeiro Jesus que se fez homem no meio dos sofredores, o Reino de Deus continuará distante, utópico.
Republicou isso em nilsonbarcellosnunes.
Parabéns Mangueira, parabéns Leonardo. Precisamos de verdades não de hipócritas.
Felizmente nosso amado Papa Francisco expressou muito bem o posicionamento Cristão para com os Pobres instituindo o “Dia do Pobre”, no domingo que precede o Domingo de Cristo Rei do Universo, último domingo do Ano Litúrgico da Igreja Católica, por muitos esquecido: “Dia do Leigo”, dos cristãos que não são clérigos ou religiosos, dos batizados, cuja missão é ser “sal da terra e luz do mundo.” Os batizados somos todos que recebemos a missão do “Ide pelo mundo e pregai o Evangelho (a Boa Nova) a toda criatura batizando. Quem crer e for batizado será salvo. Mas quem não crer será condenado'(Marcos 16,15). Hoje estamos celebrando a “Conversão de São Paulo”, fariseu exemplar que por Vontade de Jesus tornou-se cristão exemplar, e que como Jesus foi morto.Jesus foi casto, pobre e obediente ao Pai. É nosso Modelo a seguir. São raros os ricos que sejam sensíveis à pobreza. Há três domingos passados, no dia 12, fui assaltada, ele levou minha bolsa com dinheiro, documentos, etc. Fui dias depois à Santa Missa e no final, pedi ao padre que orasse poe ele, já que a injustiça social imensa gera muitas destas atitudes. Tive a oportunidade de presenciar a solidariedade de crianças pobres que, ao receberem uma ajuda de algo para comer, imediatamente partilhavam com seus companheiros!!!
Que incrível porfessor Boff, que deus lhe abeçoe! E que esse enredo da manguei traga saudáveis questionamentos nas mentes do nosso povo, na âmbito da casa e da rua. Apredi contigo essa face diferente de jesus, através de seus livros e palestras, espero aprender cada vez mais. Gostaria também de saber dos próximos eventos seus. Paz e Bem!
Tua entrevista está excelente, mestre L. Boff! Parabéns pelas sábias e lúcidas palavras.
Como afirmaste (e concordo plenamente), “não há erro nenhum naquilo que a Mangueira afirma”. De fato, o que acontece é que grande parte dos cristãos “vive uma fé só cultural e não de convicção”. Muitos não estudam e nem aprofundam a fé cristã que dizem professar.
A Mangueira – como também bem disseste – com seu enredo e sua arte, faz uma pregação brilhante (melhor do que a de qualquer sacerdote ou pastor) porque chama, prende a atenção e questiona a todos nós cristãos com o que é dito e exposto.
Te admiro muito, mestre Boff!
Paz e bem!!!
Jorge, obrigado por suas palavras.Eu pessoalmente acho que atualmente são os leigos/as, os literatos, os artistas aqueles que melhor compreendem e propagam a mensagem libertadora e humanitária de Jesus. Os pregadores oficiais, bispos, padres (exceção feita ao Papa Francisco) pregam um Jesus que nos deixa perplexos: por que o mataram? Ele é tão etéreo que parece que morreu tranquilo, cercado de discípulos e na plenitude dos dias, de velho. O Filho se fez homem, veio ao mundo, mas “os seus não o receberam”, o devolveram para Deus para que só ficasse como Deus, fora de nós, lá em cima e não como ele quis, ficar conosco e não ter vergonha como dia a Epistola aos Hebreus de nos chamar seus irmãos e irmãs. Uma forma de negar o cristianismo hoje e sempre é não aceitar a humanidade e a jovialidade de Deus. Deixar Deus lá longe e fora. Assim podemos continuar com nossos projetos, às vezes tão inumanos e perversos. Penso que os críticos ao enredo da Mangueira, os do TFP pertencem a esse grupo de negadores do cristianismo verddeiro, em nome de um cristianismo vazio de humanização, de encarnação, contrário à própria vontade de Deus de querer ser um membro de nossa humanidade. Humano assim como Jesus, só Deus mesmo. Abraço lboff
Mestre L. Boff, eu é que agradeço por teus artigos, entrevistas e outros inúmeros escritos que tanto nos enriquecem. Muitíssimo obrigado! Obrigado também pelo feedback!
Sou da Bahia. Daqui, fico atento ao que o senhor escreve para “beber da fonte” da tua sabedoria e crescer sempre mais com o que tens a nos ensinar.
Desejo-lhe, agora é sempre, saúde, lucidez e sucesso.
Forte abraço!
Boa tarde Sr: Leonardo Boff. Quer dizer então, de acordo com suas próprias palavras acima TODOS os bispos e padres (Exceto o Papa Francisco) que não pregam o Jesus que esteja de acordo com sua leitura (teológica?) até hoje anunciaram um Jesus errado?
Cristovão: precisamos sempre voltar aos evangelhos que nos falam do Jesus histórico, homem entre homens, mas tão humano que só podia ser Deus. lboff