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MANFREDO  DE  OLVEIRA,  da Universidade Federal de Fortaleza, é uma de nossas melhores cabeças filosóficas. Formado em Roma e em Munique possui um vasto cabedal de conhecimentos filosóficos,teológicos e especialmente éticos. Sua produção combina ética com política e com a democracia. Publicamos aqui este texto sobre a democracia, pois vivemos tempos sombrios em que ela está sendo explicitamente ameaçada por quem tem um espírito fascista, por sua natureza autoritário e anti-democrático. A atual eleição é antes de tudo uma escolha entre a democracia e o autoritarismo e a barbárie nele implícita. Só combater a corrupção que atravessa praticamente todos os partidos e seletivamente atribuí-la ao PT é um alibi  para tirar de foco a questão principal: a democracia ou o fascismo. Queremos aprofundar a democracia. Esse texto, por todos compreensível, ajudará a conhecer melhor esse valor universal, tão universal quanto os direitos humanos.  LBoff

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Na raiz da democracia está a primazia da igualdade, o que implica combate aos privilégios”
A ideia da igualdade de direitos emergiu na modernidade como o núcleo da vida democrática. A partir dela se criou o espaço das lutas políticas em função de sua efetivação na configuração das sociedades.
Desde a redemocratização após a dissolução da ditadura militar nós brasileiros temos passado por essa experiência e tomamos consciência de que há obstáculos enormes para o estabelecimento de uma sociedade que mereça o nome de democrática. Um deles vincula-se à nossa cultura política e se pode chamar de “visão aristocrática da vida”, radicalmente contraposto à concepção democrática e ainda fortemente presente em nossa maneira de ver o social, embora no mais das vezes de forma implícita.
Uma primeira característica dessa forma de pensar é o que os sociólogos denominam a “naturalização da vida social”. Trata-se da legitimação da ordem social faticamente existente através de sua identificação com uma ordem que provém da própria constituição do ser humano.
Nessa ordem não se deve tocar porque o lugar que cada indivíduo ocupa no todo social lhe é determinado pela ordem natural das coisas, transmitida em seu nascimento. Assim, o rico deseja ser rico, o pobre deve desejar ser pobre, o negro e a mulher não têm porque querer mudar seu lugar no mundo. Só a ilusão, a fraqueza da vontade ou a manipulação da consciência explica o aparecimento de posturas que não se adequam a essa situação natural. Significa identificar o faticamente existente com o normativo e em alguns casos essa identificação ainda aparece justificada por referência a ideias religiosas.
Na visão aristocrática da vida, cada um se encontra num nível determinado na hierarquia dos humanos. Há uma experiência das diferenças entre os seres humanos que resiste às semelhanças biológicas e às características comuns do ser pessoal. Cada um deve se contentar com “seu lugar”.
Para essa concepção há graus de humanidade (embora normalmente ninguém tenha coragem de assumir abertamente essa afirmação) e certamente tomaríamos um grande susto se examinássemos com honestidade e rigor nossos comportamentos e palavras porque iríamos descobrir que nos comportamos e falamos muitas vezes de acordo com esta concepção e, na realidade, nos contrapomos à tese da igualdade de direitos.
A visão democrática emerge de uma experiência radicalmente oposta: pode-se dizer que aqui a experiência básica é a de que o outro é meu semelhante de onde decorre a tese da igualdade básica de todos os humanos e a exigência de configurar a vida de tal modo que esta igualdade básica se efetive em relações simétricas em todas as esferas da existência resistindo a todo tipo de ordenação que impeça ou limite sua efetivação.
 Na raiz da democracia está a primazia da igualdade, o que implica combate aos privilégios que devem ser considerados elemento inaceitável, e a luta pela igualdade de direitos. Com esta postura, a visão aristocrática perde seu caráter natural e se revela fruto de pura convenção fundada em interesses de determinados grupos.
A descoberta do caráter construído da ordem social, econômica e política traz como diz o presidente do Observatório de Desigualdades de Paris P. Savidan grandes consequências não só para a configuração da vida coletiva, mas para a experiência que o ser humano faz de sua própria humanidade.
Manfredo Araújo de Oliveira, Filósofo e professor da UFC, autor de Etica,Direito e Democracia (Paulus) 2010; Etica e Sociabilidade (Loyola) 1993 entre outros.

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