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                                             Segunda Parte

 Superação Histórico-Social da Violência?

Se a violência em uma origem histórica, cultural, social e radical, é mediante outro tipo de história, de cultura, de sociedade e de radicalidade que ela será minimizada e controlada em seu aspecto destrutivo.

Importa reconhecer, como têm feito tantos analistas, especialmente René Girard, que a violência comporta um componente de mistério que se subtrai à análise científica: por que tanta violência na história da natureza e das sociedades? por que toda ordem, para se manter, tem de produzir desordem, exclusão, punição e vítimas? por que, na história, até hoje, predominou o desejo mimético concorrencial, e não o desejo mimético cooperativo? Chegará o dia da predominância do desejo mimético cooperativo? Não estaríamos às suas portas, com a alenta e contraditória emergência de uma sociedade mundial, numa consciência planetária e numa única casa comum, o planeta Terra?

Girard confessa, num encontro com teólogos, sociólogos e antropólogos ligados à teologia de libertação latino-americana, ocorrido na Universidade de Piracicaba, de 25 a 29 de junho de 1990:

“Todos estamos de acordo em resistir ao desejo mimético. Mas isso parece provar que as forças geradoras da violência neste mundo, por razões misteriosas – que eu tento compreender – ao nível da própria organização do mundo como tal, num certo sentido, são mais poderosas que a harmonia e a unidade. Este é o aspecto sempre presente do pecado original, enquanto para além de qualquer concepção mítica, representa um nome para a violência na história” (cf. René Girard com teólogos da libertação. Petrópolis: Vozes, 1991, ps. 59).

         Apesar dessa força negativa, repugna ao ser humano pessoal e social entregar-se aos mecanismos da violência. Sempre de novo cria formas de resistência e de libertação. Por isso, Girard insiste na possibilidade histórica de uma outra lógica, não mais a da exclusão, mas a do diálogo e a de mais ampla inclusão; numa palavra, a de uma cultura radicalmente democrática.

Se no ser humano há o desejo mimético para o mal, vigora nele também o desejo mimético para o bem. Ao invés da exclusão do rival, pode-se fazer uma aliança com ele, elaborar uma estratégia de solidariedade e de comunhão. Desse transfundo nascem todas as possíveis formas de superação da violência.

Há dois desafios básicos para a história brasileira que, bem equacionados, teriam como efeito a diminuição considerável das estruturas de violência e também o controle sobre a vontade de violência dos cidadãos particulares: a gestação de um povo e a criação de uma democracia social.

Gestação de um povo a partir de movimentos e associações sociais

          No Brasil, desde o início, houve a presença do aparelho de Estado, que veio transplantado para cá para organizar e garantir a exploração colonial. Os colonizadores, muitos celerados, marginais e aventureiros, não vinham para criar uma nação, mas para fundar uma empresa comercial para enricar rapidamente, tornar-se fidalgos (filhos de algo), regressar a Portugal e desfrutar da riqueza acumulada. Submeteram primeiro os índios, e depois introduziram os negros africanos como mão-de-obra escrava. Criou-se aqui uma massa humana negada como sujeito histórico, sem consciência libertária e sem um projeto de futuro. Essa massa foi sempre manipulada pelas elites, humilhada e desprezada até os dias atuais.

A grande contribuição, especialmente a partir dos anos 30, foi a organização do trabalho industrial e o surgimento de associações de trabalhadores. O processo fez-se nesta linha: do seio da massa, sob a atuação de líderes carismáticos, agentes de educação popular e agentes religiosos, formaram-se comunidades, associações e movimentos populares de todo o tipo. Nesses espaços, foram surgindo atores sociais conscientes, críticos, com vontade de modificar a realidade circundante e de gestar as sementes de um outro tipo de sociedade, mais participativa, popular e democrática.

A articulação dessas associações gerou o movimento popular brasileiro. Ele está fazendo da massa um povo organizado. E povo só existe quando se elabora uma consciência coletiva, se desenha um projeto nacional e se instauram as práticas para implementá-lo. Desafio histórico dos intelectuais orgânicos e da pedagogia popular é gestar, mediante a organização da massa, as associações, as comunidades, os movimentos de toda ordem (por terra, casa, saúde, escola, direitos humanos, sindicalismo militante, etc.), o povo brasileiro. Ele ainda não se constituiu totalmente. Predominam as massas deserdadas e destituídas. Elas gritam e querem ser povo participante e organizado. Mas, lentamente, como fruto da luta popular e de seus aliados, está nascendo, finalmente, o povo brasileiro.

Esse povo, pela participação social nos movimentos e pela militância dos partidos ligados à sua causa e luta, obriga a sociedade política e escutá-lo, a negociar, e destarte a diminuir os níveis de violência estrutural.

Criação de Uma Democracia Social, de Base e Popular

        Outro desafio é a construção do quadro político-institucional para situar o povo nascido da luta de libertação histórica. Trata-se da democracia social e participativa. Somos herdeiros de uma sociedade escravagista e patrimonialista, de um Estado paternalista, beneficiente, mas nada participativo e pouco orientado pelas demandas populares. Possuímos uma fraca democracia delegatícia, cheia de vícios políticos, corrupta, feita, em muitos lugares, de currais eleitorais e da compra direta de votos. Se tomarmos como referência a igualdade, o respeito aos direitos e a justiça social, ela se parece antes a uma farsa que uma realidade histórica.

Como fruto da organização social, já se produziram partidos populares, como o PT, ou segmentos populares de partidos progressistas e até liberais-burgueses ou tradicionalmente de esquerda, que podem postular reformas profundas na sociedade e conquistar o poder de Estado, seja municipal, estadual ou federal.

Essa democracia participativa está sendo ensaiada nos movimentos sociais. Mas ela é querida para o corpo de todo da sociedade. Ela se baseia, fundamentalmente, nestes quatro pés, com os de uma mesa.

participação a mais ampla possível de todos, de baixo para cima, de tal sorte que cada um possa se entender como cidadão e sujeito da história que está ajudando a construir;

  • igualdade, que resulta dos graus cada vez mais profundos e amplos de participação; igualdade inicial de permitir que um maior número de cidadãos tenha chances de viver melhor, preparar-se profissionalmente, participar na cultura. Em face das desigualdades subsistentes, deve vigorar a solidariedade social;
  • respeito às diferenças de toda ordem, como expressão da riqueza humana e social; por isso, uma sociedade democrática deve ser pluralista, multiétnica, pluri-religiosa e com vários tipos de propriedade;
  • valorização da subjetividade humana – o ser humano não é apenas um ator social, é uma pessoa, nó de relações para todos os lados, no mundo e junto com outros. A comunhão e a espiritualidade são valores sociais inestimáveis para a auto-realização pessoal e para humanizar as instituições e as estruturas sociais.

Esta mesa, entretanto, está assentada sobre uma base, sem a qual ela não se sustenta: uma nova relação para com a natureza e para com a Terra, nossa Casa Comum. Em outras palavras, esta democracia deverá incorporar o momento ecológico fundado num outro paradigma. O vigente, centrado no poder e da dominação em função da acumulação ilimitada, encontrou um limite insuperável: os limites da Terra e de seus bens e serviços não renováveis. Uma Terra limitada não suporta um projeto ilimitado de crescimento. Por forçar estes limites, estamos tirando o equilíbrio da Terra e devastando seus ecossistemas. O aquecimento global e os eventos extremos vividos nos últimos anos mostram a febre e a doença da Terra.

Esta consciência dos limites que cresce mais e mais, nos obriga a pensar num novo paradigma de produção, de consumo e de repartição dos recursos escassos entre os humanos e também com a comunidade de vida (seres vivos como animais, aves, florestas que também são criadas pela Terra e que precisam de seus nutrientes).

Esse novo paradigma se baseia em algo da essência da vida, especialmente, da vida humana que é o cuidado, a solidariedade e a corresponsabilidade coletiva. Especialmente, o cuidado é fundamental porque comporta uma relação não agressiva e protetora da natureza e da Mãe Terra.

Esta nova consciência fez com que, a própria ONU tenha oficializado os direitos da natureza e o reconhecimento de que a Terra é efetivamente mãe. Ambos possuem valor em si mesmo, independente do uso que fazemos deles, e por isso são sujeitos de direitos que devem ser respeitados. A democracia deverá ser enriquecida com esses novos cidadãos; será uma democracia participativa e sócio-cósmica.

Esse tipo de democracia assim enriquecida – construída de baixo para cima, participativa, solidária, dialogal, humano-espiritual e ecológica – é capaz de orientar uma convivência menos agressiva, com mais colaboração e tolerância. Numa palavra, com significativa diminuição das causas que produzem violência entre as pessoas, na sociedade e na natureza.

Desse duplo processo – da constituição de um povo e da fundação de uma democracia participativa e sócio-cósmica – elabora-se a cidadania e a con-cidadania.          Cidadania pela qual as pessoas se sentem portadoras de direitos e deveres diante do Estado, que ajudam a constituir; e con-cidadania pela qual os cidadãos se unem a outros cidadãos para dinamizar a sociedade, para além daquilo que vem sendo feito pelo Estado.

Esses dois tipos de cidadania fazem das pessoas sujeitos históricos ativos que deixam para trás o caráter de massa e entram a compor a sociedade como o conjunto dos cidadãos organizados em Estado e socialmente auto-organizados (sociedade civil) e cuidadosos dos bens e serviços naturais. Agora se poderá falar com propriedade de história de um povo, e não apenas de heróis ou de classes hegemônicas.

Conclusão: contra a Resignação e por Uma Esperança Histórica

Estamos em face de um longo caminho civilizatório. Importa trilhá-lo, pois só assim conferimos um rosto humano à nossa história marcada por tantas barbaridades, cujos efeitos nos alcançam até o dias de hoje. A história é criativa e sempre aberta a formas mais altas de convivialidade. Cada geração deve dar a sua contribuição para essa aventura coletiva.

Não esposamos a resignação de Freud, que, numa carta-resposta a perguntas de Einstein, de 1932, sobre a persistência da violência nas relações humanas, escreveu: “Esfaimados, pensamos no moinho que tão lentamente mói, que poderíamos morrer de fome antes de receber a farinha”.

Não estamos condenados a morrer de fome, pois certamente o desígnio da história não é forçar-nos a ser lobos uns dos outros, mas concidadãos e sócios na justiça, na participação, no diálogo e na paz, no cuidado de nossa Casa comum, num convívio onde sejam menos difíceis a amizade e o amor.

Contrariando Freud, diria que a fila do moinho ela existe e persiste porque há farinha, e farinha para todos. Ela é suficiente não só para todos os humanos, mas também para os outros seres vivos que conosco compartem a aventura terrenal e cósmica.

O desejo mimético pode ser de colaboração, altruísmo e solidariedade. Repartiremos a farinha, mesmo sendo pouca, segundo critérios de justiça e de compaixão – no sentido budista da palavra, que significa compartilhar da vida, da luta, da alegria e do sofrimento da existência humana, social e planetária. E a história das religiões e das tradições espirituais testificam que, quando o pouco é repartido, ele se multiplica e se transforma em muito, a ponto de sobrar, como no relato bíblico da multiplicação dos cinco pães e dos dois peixes.

Vamos restabelecer a re-ligação originária para com a natureza e a Mãe Terra, cuidando na Casa Comum como nos tem ensinado o Papa Francisco em sua esplêndida encíclica Laudato Sí, sobre a ecologia (2015).

A Terra não precisa ser um vale de lágrimas. Ela pode transformar-se num lar comum, onde há fogo e óleo para todos ao redor da mesma mesa, a desfrutar da convivialidade e da comensalidade humanas e da bondade de todas as coisas.

Cabe terminar com estas consoladoras palavras do Papa Francisco em sua encíclica Laudato Sí:” caminhemos cantando, que nossas lutas e a nossa preocupação pelo planeta não nos tirem a alegria da esperança”(n. 245). FIM

Leonardo Boff é teólogo, filósofo e professor emérito de ética e filosofia da religião da UERJ e portador do Prêmio Nobel Alternativo da Paz pelo Parlamento sueco e membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra e professor visitante em várias universidades estrangeiras como Basel, Heidelberg, Harvard, Lisboa e Salamanca.