Só pessoas muito ignorantes e alienadas de suas próprias raízes, no fundo materialistas crassos, fruto do economicismo imperante, podem tomar a decisão de fechar a fonte de onde nasce e se alimenta a nossa identidade nacional: a cultura, para a qual existia o Ministério da Cultura. Agora essa fonte está sendo lacrada. E com razão, pois da cultura nasce a criatividade, o espírito critico e os grandes sonhos que mobilizam todo um povo. Tudo isso é perigoso para governantes medíocres que não pensam e temem todo tipo de pensamento que não seja o deles.
Quase sempre, por causa da colonização, fomos condenados a reproduzir e a mimetizar os padrões culturais de nossos senhores-opressores. Mas lentamente, vivendo em outro ecossistema, nos trópicos, fomos desenvolvendo nosso próprio modo de ser, de viver e conviver, o que podemos chamar a cultura brasileira em estado nascente.
No final de abril escrevi neste espaço um artigo com o título “A cultura: o nascedouro da utopia Brasil”. Face aos fatos recentes com a instauração de um governo interino, cego para tudo aquilo que nos identifica e nos honra, agora retomo o tema.
Todo povo, cada nação elaboram o seu sonho, a sua utopia própria que dá sentido às práticas sociais e mantem sempre aberto um horizonte de esperança, particularmente em momentos de crise.
Geralmente esses momentos são ocasiões de projetar visões novas, buscar saídas salvadoras e deixar irromper a criatividade. O Brasil está passando por um destes momentos críticos. Portanto, negar um espaço à cultura é apequenar o país e condená-lo a reproduzir o mesmo que muitas vezes não deu certo ou poderia ter sido bem melhor.
Celso Furtado que além de economista renomado foi um dia Ministro da Cultura, constata com tristeza em seu livro”Brasil: a construção interrompida”(1992): sempre houve “forças conservadoras e reacionárias que se empenharam em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação”(p.35), por medo de perder seus privilégios. Fomos impedidos de construir um Brasil não só imaginário mas real que integrasse minimamente a todos, multicultural, tolerante e até místico.
Chegou o momento, penso, que se nos oferece o desafio de construir a nossa identidade ou a nossa utopia inspiradora. Volto a Celso Furtado. “Ter ou não acesso à criatividade, eis a questão”(O longo amanhecer, Paz e Terra, Rio de Janeiro 1999, p. 67). E continua. “Essa cratividade se mostra nas artes, na música, nas imagens de propaganda e marketing… Uma sociedade só se transforma se tiver capacidade para improvisar”(p.97).
Nunca nos faltou capacidade de improvisação e de criação. Faltou-nos a vontade dos governos sem raiz popular e a disposição de nossas classes neocolonizadas que não souberam valorizar e aproveitar o enorme potencial criativo do povo.
A partir de que base assumiremos essa empreitada? Deve ser a partir de algo tipicamente nosso, que tenha raízes em nossa história e que represente um outro software social. Esse patamar básico é o que escremos acima, a nossa cultura, especialmente a nossa cultura popular. Como novamente diz Celso Furtado: ”desprezados pelas elites, os valores da cultura popular procedem seu caldeamento com considerável autonomia em face das culturas dominantes”(O longo amanhecer, 1999, p.65). O que faz o Brasil ser Brasil é a autonomia criativa da cultura de matriz popular.
A cultura aqui é vista como expressão de um sistema de valores, de projetos e de sonhos de um povo. A cultura se move na lógica dos fins e dos grandes símbolos e narrativas que dão sentido à vida. Ela é perpassada pela razão cordial e contrasta com a lógica fria dos meios, inerente à razão instrumental-analítica que visa a acumulação material. Esta última predominou e nos fez apenas imitadores secundários dos países tecnicamente mais avançados. A cultura segue outra lógica, ligada à vida que vale mais que a acumulação de bens materiais.
Ninguém melhor que o cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima, em seu ainda não reconhecido livro:”A refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada” (2011) para apresentar esta perspectiva da cultura e que a fez o eixo articulador da utopia Brasil e de nossa identidade nacional.
A nossa cultura, admirada já no mundo inteiro, nos permite refundar o Brasil que significa: “ter a vida como a coisa mais importante do sistema social…é construir uma organização social que busque e promova a felicidade, a alegria, a solidariedade, a partilha, a defesa comum, a união na necessidade, o vínculo, o compromisso com a vida de todos, uma organização social que inclua todos os seus membros, que elimine e impeça a exclusão de todos os tipos e em todos os níveis”(p.266).
A solução para o Brasil não se encontra na economia capitalista como o sistema dominante nos quer fazer crer, mas na vivência de seu modo de ser aberto, afetuoso, alegre, amigo da vida. A razão instrumental nos ajudou a criar uma infra-estrutura básica sempre indispensável. Mas o principal é colocar as bases para uma biocivilização que celebra a vida, que convive com a pluralidade das manifestações, dotada de incrível capacidade de integrar, de sintetizar e de criar espaços onde nos sentimos mais humanos.
Pela cultura, não feita para o mercado mas para ser vivida e celebrada, poderemos antecipar, um pouco pelo menos, o que poderá ser uma humanidade globalizada que sente a Terra como grande Mãe e Casa Comum. O sonho maior, a nossa utopia,da mais alta ancestralidade, é a comensalidade: sentarmos juntos à mesa, como irmãos e irmãs e desfrutar a alegria de conviver amigavelmente e de saborear os bons frutos da grande e generosa Mãe Terra.
Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu Virtudes para um outro mundo possível (3 vol.), Vozes 2005-2006.
“Jesus é a liderança imortal dos homens livres” (P.Netto). Marízia Costa Carmo Lippi,Diocese de Petrópolis-RJ. 18/5/16.
Sábio como sempre!
Obrigada pelo bálsamo que é ler seus textos!
AMPLIAÇÃO DE PODERES
Ando defendendo a AMPLIAÇÃO DE PODERES em alinhamento com os TRÊS PODERES. Na HISTÓRIA DO REI QUE NÃO SABIA DE NADA os Ministros colocavam TAPUMES e OUTDOORS para que o Rei não visse os estragos, desvios e deficiências do país. Ministros e secretários são SÚDITOS E AJUDANTES trapalhões e patetas. PENTÁGONO E MÍDIA servem para atrapalhar mais do que ajudar. O AMERICAN WAY OF LIFE é hoje um
AMERICAN WAY OF DEATH E/OU SURVIVE. A experiência de INDEPENDÊNCIA E INTERDEPENDÊNCIA DE PODERES pode solucionar problemas. Um PODER EDUCATIVO
abrangendo Cultura juntamente com um PODER SOLIDÁRIO abrangendo Saúde e Ações Sociais poderiam se alinhar com um PODER DEFENSIVO. Teríamos um país PODEROSO como requer um espaço de mais de oito milhões de quilômetros quadrados, 206 milhões de pessoas, quase seis mil cidades e flutuando com seis milhões de CIDADÃOS DO MUNDO.
Ministro, secretário, comissionados só mesmo no voto ou por concurso. O resto é politicagem e falta de pensamento ALTO E GRANDE como requer o Brasil.
Caro Frei Leonardo,
Este tema em si é instigante pois se trata de como vivemos nossas vidas de forma interativa uns com os outros e baseados em nossas experiências e costumes que remontam às gerações que nos precederam e, em dias cinzas onde o fascismo se escancara sem o mínimo pudor, cultura passa a ser um inimigo imaginário (mais um) a ser combatido.
Antes de entrar no cerne da questão que é a extinção do MINC e do que isto significa em uma nação multicultural como o Brasil acho pertinente que nos debrucemos um pouco sobre o que é e como está sendo tratada a cultura nacional. Em primeiro lugar, não acredito numa cultura nacional mas em várias culturas conviventes num mesmo Estado. Isto ocorre pelo fato do país ter dimensões continentais e múltiplas e diferenciadas geografias e climas e ser formado por etnias as mais diversas o que por si só já apimenta bastante o conceito de uma unicidade cultural.
Concordo com o artigo quando diz que os modelos foram importados e enfiados goela abaixo do povo. Mas aí temos o primeiro ponto no tocante ao trato do objeto cultural. Emquanto só havia Portugueses no Brasil desenvolveu-se um tipo de sociedade colonial onde o objetivo claro de quem morava aqui era fazer dinheiro. Colonos Portugueses eram, na sua maioria, degredados, o que por si só já explica o papel secundário que as artes e os estudos tiveram por aqui. Se se comparar as colônias Espanholas com o Brasil à época, notaremos que o papel que a cultura das metrópoles desempenha nas colônias é bem diferenciado. Espanha fundou sua primeira universidade nas Américas ainda no séc. XVI enquanto que o Brasil só teve sua primeira universidade no séc. XX. Por aí já podemos antever o que virá. A tolerância da coroa Espanhola para com os objetos culturais – fossem eles livros, objetos de arte ou costumes – nas colônias era muito maior do que a que Portugal praticava no Brasil ou nas colônias Africanas. Espanha teve muitíssimo menos escravos do que o Brasil – o recordista do tráfico de seres humanos nas Américas – e por aí vai. Devido ao tamanho continental do Brasil e das variadas culturas indígenas que por aqui haviam aconteceu que a uma certa altura os Portugueses falavam a língua dos índios e o Português era falado somente em ocasiões e lugares especiais. Este costume foi interrompido por um decreto do Marquês de Pombal que obrigava que o idioma lusitano fosse falado em todo o império Português pois viu neste hábito adquirido na colônia americana uma ameaça à hegemonia portuguesa nas terras conquistadas. Depois veio a corte e a família imperial e os Brasileiros acharam chic falar com o chiado ao fim das palavras e o carioca o mantém até hoje emprestando aquele charme particular ao seu modo de falar e por aí vai. Onde quero chegar com esta revisitação histórica é o ponto: a preocupação, desde a época colonial, é fazer fortuna. Conhecimento e cultura não são impotantes, só servem como uma espécie de verniz para disfarçar uma matutice que não consegue se esconder muito bem, embora toda a população tenha assimilado uma cultura diferenciada da Portuguesa, misto de contribuições de indígenas e africanos que conviviam com os brancos. Essa interação foi lembrada e valorizada em eparsos momentos da nossa história quando, por exemplo, os negros, de escravos e preguiçosos emprestaram suas vidas à nação tombando na guerra do Paraguai pois os senhores brancos não queriam expor seus varões ao perigo então mandavam seus escravos em seu lugar. O mesmo aconteceu nas revoluções onde o Exército interagiu contra os revoltosos. A maioria do contingente era de negros mandados pelos seus senhores ou de ex escravos que viam na batalha uma chance de sair da pobreza extrema. Esta é a ideologia predominante no país desde sempre: o colonizador, o endinheirado, pode tudo e tudo lhe pertence até mesmo a vida dos que com ele trabalham e ele só dará algum valor aos que não são de seu grupo se puder usá-los nalguma empreitada que ele mesmo não quer para si. É aí que temos toda essa sedimentação de várias culturas em uma nação pois, dependendo da região e de quem lá trabalhasse, a interatividade com o colonizador se dava de maneiras diversas embora seguindo um padrão pré-estabelecido. E foi esse pensamento, de que a riqueza material sobrepuja sobremaneira a cultural, que vingou por aqui. Ter sempre foi muito mais importante do que ser. Tudo, desde a ignorância e a estultice, é perdoado desde que o bronco tenha bens. É quase que um padrão no Brasil que o sujeito que tem posses seja considerado culto, inteligente – não raro tratado por “doutor” – e conhecedor de todos os assuntos mesmo sendo um asno porque a lógica é simples: se o cara conseguiu amealhar bens é porque ele tem todo o conhecimento necessário para alcançar o sucesso mesmo que este sucesso tenha sido alcançado traficando drogas ou prostituindo pessoas.
Com o advento do MINC na década de 80 a cultura, tanto a acadêmica, universal, quanto a popular passaram a receber mais atenção por parte da classe política pelo simples fato de que se deram conta – com décadas de atraso – de que cultura pode, sim, ser um grande negócio e trazer muitas divisas para o país e ajudar consideravelmente no desenvolvimento regional. À parte das eternas brigas entre radicais que negam qualquer influência externa e acham que tudo pode ser criado do nada numa panacéia do que seria uma autêntica cultura Brasileira e radicais que pensam no sentido contrário, o ministério foi se inventando e aperfeiçoando ao longo de três décadas. A vilipendiada lei Rouanet, na boca dos fascistas, é um exemplo das tentaivas – muitas vezes não tão exitosas – de se criar mecanismos para que a classe artística pudesse dialogar diretamente com setores da sociedade interessados em destinar parte de seus impostos para a realização de projetos nesta área e receber em troca o marketing de seus empreendimentos e altas pontuações em suas fichas cadastrais nos grandes bancos internacionais que levam muito em conta se o empresariado só tira da sociedade onde seus negócios estão baseados ou se aplicam parte de seus ganhos em projetos sociais, culturais ou ecológicos – prática ainda nova e não muito difundida por aqui.
A verdade é que o MINC estava mexendo muito com vários grupos Brasil afora e estabelecendo um debate contínuo sobre quais rumos os variados setores da sociedade queriam que a cultura tomasse no país. É aí que a porca torce o rabo. Quando se tem um golpe de estado de cunho totalmente neoliberal e entreguista como este que aí se nos escancara, é lógico que os golpistas tentarão de todas as maneiras barrar toda e qualquer forma de resistência. Cultura e arte só se faz a partir de elaborações intelectuais. Quem consegue elaborar uma forma artística ou simplesmente analisa o panorama cultural no seu entorno é um ser diferenciado porque tem uma característica singular: a observação. O artista, o filósofo, o artesão, o repentista, enfim, todos os que são envolvidos na atividade artístico-cultural são observadores natos pois é da observação que nascem as idéias e se dá a transformação que germinará num novo produto cultural. E, obviamente, os trogloditas que tomaram o poder de assalto não querem este tipo de gente se manifestando e questionando suas “verdades absolutas”. Artistas e pensadores se transformaram do dia para a noite em inimigos do estado – um estado ilegítimo, certamente, e como tal devem ser tratados. Como atualmente não cabem mais as perseguiçoes nos moldes que se viu no golpe de 64, a técnica de silenciar os “inimigos” é tirar seu poder de articulação e sua voz. A primeira tentativa de tirar poder de manifestaçao do povo foi a pataquada de querer mudar os padrões de fornecimento de dados pela internet aumentando os preços e impondo limites às taxas de transferência destes o que, em última análise, seria dar a internet para os mais ricos, os que podem pagar mais caro pelo serviço. E eles tem porque temer: a internet foi a grande responsável pela ilegitimização do golpe. Foi através dela que as pessoas interagiram a favor ou contra o governo de Dilma e é através dela que os que foram às ruas pedindo sua queda agora estão comentando sobre os descalabros e as ameaças que agora começam a se materializar até mesmo sobre si percebendo que foram vítimas de um engodo político-jurídico-midiático. A segunda tentativa é o desmanche do MINC, a destituição do presidente da EBC e a perseguição jurídica aos blogs de esquerda. É uma guerra. Simples assim. Uma guerra da ralé mais odiosa encastelada no Congresso Nacional e em setores ligados ao judiciário contra o resto da população mas os motivos da guerra são os mesmos que Portugal tinha ao não permitir que qualquer tipo de cultura florescesse nas colônias: assegurar que o conhecimento não se tornasse uma ameaça à hegemonia da coroa e de seus interesses puramente materialistas.
Como cidadão e artista digo que esta sombria fase que ora passamos pode nos ser muito benéfica se, ao invés de lamentarmos partirmos para ações positivas, denunciando, esclarecendo, participando de debates seja lá em que níveis for. E, para os artistas em geral, está aí uma situação que sempre nos desafia e provoca nossa veia criativa pois é na adversidade que acontecem os insights mais brilhantes e verdadeiras obras-primas podem surgir. Quem sabe sejam estas as pérolas que iremos produzir em resposta a este doloroso grão de areia que puseram em nosso caminho.
Como o senhor explica então o aumento da criatividade no período do Regime Militar, que convenhamos, não tinha a cultura como prioridade. O fato de se extinguir uma pasta de ministério não significa que se está fechando as fontes de criatividade, até pelo contrário. Ainda mais em se sabendo que a pasta é uma, dentre todas as outras, diga-se de passagem, que está colaborando de maneira expressiva, para o aumento do déficit primário, que são as dívidas deixadas pelo seu governo, ou os gastos sem lastros irresponsavelmente realizados. Nós sabemos que a preocupação dos “artistas” que estão se manifestando é outra, é a abertura da Caixa de Pandora, do Minc.
Governo golpista? Considerando que quem deu o golpe está saindo por irresponsabilidade podemos concluir, não é frei? Que o senhor, está pavimentando direitinho o seu caminho para o purgatório. Mas fique atento, pois o nem o purgatório aceita quem não se curva à redenção…
Republicou isso em Museu AfroDigital – Estação Portugal.
Republicou isso em Paulosisinno's Bloge comentado:
Do Leonardo Boff: “O governo golpista quer fechar a fonte de nossa identidade: a cultura”.
Republicou isso em Zefacilitador.