Hoje, 13 de maio, é o dia das mães. Mas não esqueçamos a mães negras, especialmente as “amas-de-leite”, as mucamas. Quantas crianças brancas não foram por elas amamentadas e salvas?
Agora, finalmente a Justiça fez justiça aos afrodescentendes, pagando uma dívida histórica que pesava em nossa consciência branca coletiva. Foram-lhes concedidas as cotas de acesso às universidades federais. Mas a nossa dívida começou apenas a ser paga. Há tantas reparações e compensações ainda por fazer.
Enquanto isso a Paixão de Cristo continua pelos tempos afora no corpo destes crucificados. Jesus agonizará até o fim do mundo, enquanto houver um único destes seus irmãos e irmãs que estejam ainda pendendo de alguma cruz.
Assim pensa também o budismo tibetano. O bodhisattwa (o iluminado) pára no umbral do Nirvana e suplica retornar ao mundo da dor – samsara – para viver solidariamente com quem sofre no reino humano, animal e vegetal. Nesta mesma convicção, a Igreja Católica, na liturgia da Sexta-feira Santa, coloca na boca do Cristo estas palavras pungentes:
”Que te fiz, meu povo eleito? Dize em que te contristei! Que mais podia ter feito, em que foi que te faltei? Eu te fiz sair do Egito e com maná de alimentei. Preparei-te bela terrra, e tu, a cruz para o teu rei”.
Rememorando a abolição da escravatura a 13 de maio, nos damos conta de que ela não foi completada ainda. A paixão de Cristo continua na paixão do povo afrodescendente. Falta a segunda abolição, da miséria e da fome, como postula o senador Cristovam Buarque. Ouvem-se ainda os ecos dos lamentos de cativeiro e de libertação, vindos das senzalas, hoje das favelas ao redor de nossas cidades:
“Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Eu te inspirei a música carregada de banzo e o ritmo contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo, a cuíca e o atabaque. Fui eu que te dei o rock e a ginga do samba. E tu tomaste do que era meu, fizeste nome e renome, acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me devolveste.
Eu desci os morros, te mostrei um mundo de sonhos, de uma fraternidade sem barreiras. Eu criei mil fantasias multicores e te preparei a maior festa do mundo: dancei o carnaval para ti. E tu te alegraste e me aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me esqueceste, reenviando-me ao morro, à favela, à realidade nua e crua do desemprego, da fome e da opressão.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Eu te dei em herança o prato do dia-a-dia, o feijão e o arroz. Dos restos que recebia, fiz a feijoada, o vatapá, o efó e o acarajé: a cozinha típica da Bahia. E tu me deixas passar fome. E permites que minhas crianças morram famintas ou que seus cérebros sejam irremediavelmente afetados, infantilizando-as para sempre.
Eu fui arrancado violentamente de minha pátria africana. Conheci o navio-fantasma dos negreiros. Fui feito coisa, “peça”, escravo. Fui a mãe-preta para teus filhos e filhas. Cultivei os campos, plantei o fumo para o cigarro e a cana para o açúcar. Fiz todos os trabalhos. E tu me chamas de preguiçoso e me prendes por vadiagem. Por causa da cor da minha pele me discriminas e me tratas ainda como se continuasse escravo.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Eu soube resistir, consegui fugir e fundar quilombos: sociedades fraternais, sem escravos, de gente pobre mas livre, negros, mestiços e brancos. Eu transmiti, apesar do açoite em minhas costas, a cordialidade e a doçura à alma brasileira. E tu me caçaste como bicho, arrasaste meus quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria que escraviza, continue como realidade cotidiana e efetiva.
Eu te mostrei o que significa ser templo vivo de Deus. E, por isso, como sentir Deus no corpo cheio de axé e celebrá-lo no ritmo, na dança e nas comidas sagradas. E tu reprimiste minhas religiões chamando-as de ritos afro-brasileiros ou de simples folclore. Não raro, fizeste da macumba caso de polícia.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!
Quando com muito esforço e sacrifício consegui ascender um pouco na vida, ganhando um salário suado, comprando minha casinha, educando meus filhos e filhas, cantando o meu samba, torcendo pelo meu time de estimação e podendo tomar no fim de semana uma cervejinha com os amigos, tu dizes que sou um negro de alma branca, diminuindo assim o valor de nossa alma de negros, dignos e trabalhadores. E nos concursos em igual condição quase sempre tu me preteres em favor de um branco. Porque sou negro.
E quando se pensaram políticas públicas para reparar a perversidade histórica, permitindo-me o que sempre me negaste, estudar e me formar nas universidades e assim melhorar minha vida e de minha família, a maioria dos teus grita: é contra a constituição, é uma discriminação, é uma injustiça social. Mas finalmente a Justiça agora nos fez justiça e nos abriu as portas das universidades federais.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: Que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!”
“Responde-me, por favor”.
E nós brancos, os que dispomos do ter, do saber e do poder, geralmente calamos, envergonhados e cabisbaixos. É hora de escutar o lamento destes nossos irmãos e irmãs afro-descendentes, somar forças com eles e construir juntos uma sociedade inclusiva, pluralista, mestiça, fraterna, cordial onde nunca mais haverá, como ainda continua havendo no campo, pessoas que se atrevem a escravizar outras pessoas.
Oxalá possamos gritar: “escravidão nunca mais”. E enxugando as lágrimas podemos dizer como no Apocalipse:”Tudo isso passou”.
Lindo, lindo,lindo!!!!
Sim, não há dúvida que estes nossos irmãos foram muito injustiçados e maltratados e até bem pouco tempo onde, em nosso país, a discriminação racial ainda era bem forte, sem falar na injustiça social. Lembro, em minha juventude, do grande preconceito, onde havia até um jargão famoso: “negro quando não caga na entrada, caga na saída” e isto, em pleno Rio de Janeiro, na época, a capital do Brasil. Tem gente que ainda diz esta frase até hoje. Quantas vezes escutei esta frase preconcebida e taxativa contra uma raça, que se não era mais, era por culpa total dos que se intitulavam brancos. Sim, se intitulavam, pois, muitas vezes, eram também mulatos claros, afro-descendentes querendo se fazer passar por brancos e usando o jargão contra os negros exatamente para autoafirmar a sua não negritude.
O Brasil é país multiracial e altamente miscigenado; geneticamenta falando é impossível afirmar se alguém é branco ou afro descendente. Além disso, muitas pessoas que, por exemplo, no Brasil se consideram e sãoi consideradas brancas, nos EUA e na Europa seriam classificadas em sua identidade como pardas ou negras. Dois irmãos fraternos de mesmo país biológicos, um pode ter a aparência total da cor branca e outro da cor negra. Então, que me desculpem os Srs. ministros, mas é completamente impossível na prática dizer quem é branco ou qeum é negro no Brasil, a não ser que se fizesse um teste muito específico genético de seus poligens, etc.
A meu ver, seria então muito mais justo e factível se essas cotas nas universidade fossem dadas de acordo com a situação socio econômica do indivíduo e, isto sim, poderia ser comprovado de acordo com sua declaração de renda ou de seus pais. Evidentemente, que o número de negros agraciados seria sempre muito maior, pois que foram realmente sempre mais injustiçados e compõem, em sua maioria, os segmentos mais pobres de nossa sociedade. Mas existem, sim, também negros e mulatos de classe média e até ricos que seriam barrados, fazendo justiça àqueles branco que também injustiçados na sociedade. Ademais, muitos negros não querem essas cotas por raça ou cor, pois acham que pode parecer aos brancos que estão se aproveitando ou que são realmente inferiores intelectualmente, gerando preconceitos em outros níveis.
Em suma, discordo tanto das cotas raciais como concordo na grande injustiça feita aos nossos irmão de cor negra ao longo dos anos. Meu avô, o pintor Eliseu Visconti, que pintou o pano de boca do Teatro Municipal do Rio de janeiro, considerado o maior quadro a óleo do Brasil e o segundo maior do mundo, colocou negros no painel representando nossa história, nossa gente, nossa cor, pelo que foi seriamente admoestado pela sociedade da época e foi convidado e até intimado a retirar os personagens, pelo que resistiu bravamente e eles lá estão até hoje. E olha que ele era italiano de nascimento, tendo vindo ao Brasil com 1 ano de idade e aqui ficado, se radicado e, posteriormente, se naturalizado brasileiro.
Ainda podemos arrancar das entranhas da nossa sociedade, oculto em dissimulações, esse mal agudo e estúpido, chamado de racismo, um absurdo ainda latente na cabecinha e em todo o poderio das elites-branca-capitalismo-superior-direitista-conservadora.
O autor, dispensa apresentação.Sua obra, sua coragem sua dignidade, o antecede.
…entendo o significado da expressa ‘afro’, mas pode se referir tanto aos brancos como também ao negros. No caso o autor se refere aos negros. Por que não dizer as mães negras? Sou negro e não me envergonho disto, mas sou contra os ‘eufemismos’ que às vezes, podem refletir um certo grau de hipocrisia. Não estou afirmando que este seja o caso do autor, muito pelo contrário, mas assumamos a nossa negritude e pronto!!!!
Maravilhoso!!! Este texto representa a minha história, como mulher negra que guerreia pela igualdade, pela liberdade. MInha etnia, minhas raízes. Meu desejo é que todooooos lessem e pudessem sentir o prazer de se ver retratado como parte da sociedade brasileira.
Valeu!
Silvia MIrtes Bernardes
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