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O Prof. OLINTO PEGORARO, professor de Ética na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), colega de magistério, tem se notabilizado por suas reflexões  sobre Etica e Política e particularmente sobre questões ligadas à sexualidade e à família. De rigorosa formação filosófica e científica tem emitido, inclusive para órgãos federais, juízos bem fundados e sensatos. Publicamos aqui suas reflexões sobre a gestação do feto anencefálico que tem provocado não poucas polêmicas na opinião pública. Elas primam pelo equilíbrio e corroboram na formação de uma consciência a um tempo ética e cidadã.  L.Boff
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Os dias 11 e 12 de abril, ficarão na história do S.T.F. como data memorável, marco de sabedoria jurídica de nossos juízes. Mais ainda, um marco na vida da mulher e famílias, que, enfim, viram atendido seu anseio pela liberdade de decidir na questão da gestação de um feto anencefálico. São conhecidas as duas posições a respeito: primeiro, há mulheres que, descoberta a gravidez anencefálica, optam por levá-la até o fim, por amor ou por fé. Querem beijar o bebê como ele é e despedir-se para sempre. Sem dúvida, é uma maravilhosa decisão, em tudo louvável. Em segundo lugar, há o grupo de mulheres que desejam livrar-se desta gravidez. Querem exercer a liberdade de decidir sobre o assunto pois, segundo a Ministra Rosa Weber, “não interessa proteger uma mera vida orgânica”. Mas até agora estavam impedidas pela lei. Se fizessem aborto cometeriam crime e, além do sofrimento que esta operação acarreta, deviam arcar com a punição legal. O tribunal entendeu que esta situação é desumana, totalmente injusta e, para o ministro Luiz Fux, “impedir, nesta situação, a interrupção da gravidez equivale à tortura”. Segundo a Ministra Carmem Lucia, “a decisão da interrupção é também dolorosa, mas é a escolha da menor dor”.
O S.T.F. nada fez de espantosamente novo, apenas estendeu a liberdade do primeiro grupo de mulheres ao segundo. Ou melhor, o tribunal reconheceu este direito à mulher. Ela já o tinha desde seu nascimento. É a consagração da liberdade de consciência e de decisão autônoma
Os ministros do S.T.F. evidentemente agiram com segura informação científica e médica. A partir desta base, em vários momentos, recorreram à grande tradição filosófica desde Aristóteles, passando por Santo Agostinho, Tomás de Aquino e a ética moderna da autonomia da vontade e da liberdade pessoal de decidir. Assim fizeram os Ministros Aires Britto e Celso de Mello. Com estas informações teceram seus votos, oito a favor e apenas dois contra a liberação do aborto anencefálico.
Convém chamar a atenção sobre a informação científica. É a ciência médica que garante a absoluta inviabilidade do feto anencefálico. É daqui que se erguem as considerações jurídicas, éticas, teológicas e sociológicas. Por exemplo, do ponto de vista ético, um feto, neste estado não tem dimensão humana; portanto, sem qualificação ética. É um erro da natureza; o projeto da natureza é produzir seres normais mas falhou; produziu uma realidade apenas vegetativa, inespecífica. Portanto, a mulher não aborta um ser humano, apenas expele uma realidade sem condições de sentir e, muito menos, de pensar. A natureza também erra.
Outro aspecto. É importante ter presente que a origem da vida humana é muito complexa, e, mesmo, misteriosa. Sobre ela debruçam-se nossos principais saberes como a Biologia, Ciências Médicas, Filosofia, Ética, Teologia, Direito etc. São muitos ângulos de abordagem da mesma realidade; mas todas estas informações juntas ainda não abrangem a totalidade do que somos. Somos uma realidade misteriosa, composta de instinto e razão, de liberdade e dependência, de necessidade e contingência, de moral forte e instintos desatados, enfim, um ser que se eleva do tempo para a eternidade e da eternidade para o tempo. Esta complexidade nos impede de fixar-nos apenas num ponto de vista, biológico, jurídico ou teológico. É por isso que o S.T.F. tomou em consideração estas dimensões através de audiências públicas.
Mais ainda, apareceu com toda clareza que o juízo do tribunal foi laico, isto é, segundo o Direito Constitucional, independente de confissões religiosas ou filosóficas; é um juízo conforme os princípios constitucionais que, na Constituição de 1988, são de caráter humanista. Hoje, é doutrina corrente que a ética do Estado moderno é a ética dos Direitos humanos proclamados pela ONU em 1948, inspirados na Revolução Francesa.
Portanto, Estado laico não significa um Estado em conflito com as convicções religiosas. Seu papel é o de garantir a liberdade de crença, desestimular a intolerância religiosa e ser o guardião da cidadania. Este é o Estado moderno gestado por filósofos e implantado na vida política dos povos a partir da Revolução Francesa. Ele toma as decisões que convêm aos cidadãos em dado momento da História. E, segundo o Ministro Joaquim Barbosa, “as concepções morais religiosas não podem guiar as decisões do Estado”.
Antes da idade moderna, as questões humanas e morais eram reservadas aos teólogos. A religião dava, em tudo, a palavra final. Com o advento da ciência, as questões humanas passam a ter outra fonte de interpretação, tanto mais precisa quanto mais a ciência evolui e mais se aprimora o Estado laico. Claro que há espaço para os outros saberes, metafísicos, teológicos e sociológicos mas, agora, sob a regência constitucional.
Ninguém, nenhuma mulher está obrigada a fazer aborto de feto anencefálico pelo fato de que agora este ato é acolhido pela lei. Não. A lei está à disposição e protege quem dela quiser fazer uso. A mesma coisa se diga do aborto nos casos já previstos em lei, estupro, e perigo de vida para a mãe. É muito bom que a cidadania tenha estes recursos legais.
No seio da comunidade de fé pode haver posição contrária. Com todo direito. Cabe à própria comunidade religiosa exortar os fiéis a não usarem a lei, bastando-lhe a confiança que emana da fé. A decisão do S.T.F. recebeu protestos de várias confissões religiosas; sobressaíram as cristãs e, em especial, a Igreja Católica pela sua multimilenar experiência e estrutura metafísica. É salutar que, no seio da sociedade plural e de muitas versões éticas respeitáveis, haja comunidades discordantes. Elas fazem pensar e mostram que já não estamos na era do pensamento único e da verdade absoluta. Fazem pensar que todas as soluções morais são provisórias, temporais e limitadas.
Fonte:
•Olinto A.Pegoraro
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