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Publico uma reflexão de um irmão meu, Waldemar, que coordena uma ONG de mais de 20 anos SEOP (Serviço de Educação e Organização Popular) cujo objetivo é mobilizar e organizar mediante a educação populações muito pobres nas periferias de Magé e de Petrópolis. Pensa a partir da marginalidade do sistema imperante e traz elementos que ajudam a entender melhor o Brasil a partir de baixo e das grandes maiorias. LB
Waldemar Boff – educador popular
Antecipadamente declaro que não sou analista político por profissão. Sou um educador popular que há mais de 20 anos trabalho nas periferias de Petrópolis e de Magé com populações pobres que procuram se organizar e viver um modo de vida sustentável. A partir desta base faço minhas ponderações, passados já três  meses da eleição. Repensamentos são sempre úteis.
Confesso que ainda estou perplexo. Gente séria, lúcida e intelectualmente honesta, tradicionais militantes de esquerda, alguns até vítimas do regime militar, deram seu voto a José Serra do PSDB. E o fizeram convictos. Certamente tinham razões legítimas e plausíveis.
O título desse artigo poderia ser também: por que a direita votou na esquerda. Mas não pretendo me deter na análise do apoio da direita fisiológica, capitaneada pelo PMDB, à candidata de Lula, Dilma Roussef.  Seu interesse é evidente. Eles estão onde está o poder real e tenderão sempre a acompanhar a onda que estiver no comando. Essa direita não tem ideologia nem espinha dorsal. Ela tem interesses e se amolda à situação que lhe permita continuar no poder e usufruir de benesses.
Muitos intelectuais e militantes da esquerda foram tomados por justa indignação diante dos desvios de conduta do governo Lula e acabaram formando uma opinião contrária ao seu governo. Esse posicionamento, acho eu, foi influenciado por informações destiladas sutilmente pelos grupos da mídia que detém o monopólio real da comunicação e da interpretação, e a quem não interessa um projeto nacional – do Brasil para os brasileiros.
Como alternativa optaram por apoiar Serra em quem viam experiência, competência e seriedade, ou seja, um bom executivo público, sem perceberem as conseqüências sociais, econômicas e ambientais de seu projeto de Brasil. No calor da campanha talvez tenham se esquecido da definição de política, feita por Max Weber, em conferência aos estudantes de Munique em 1919: “Política é a direção ou a influência sobre a direção de um Estado”.
Suspeito que muitos eleitores não tenham se apercebido que havia três projetos de Brasil subjacentes aos discursos dos principais candidatos. O projeto neoliberal de inserção subalterna ao mercado global, que já faz água por todos os lados, foi encarnado por Serra e seus aliados. Dilma personalizava a continuação de um projeto reformador nacional com forte presença do Estado, de acentuado viés nacionalista e de prioridades às políticas que beneficiam as massas despossuídas. E finalmente o projeto de desenvolvimento sustentável proposto e defendido pela Senadora Marina Silva.
Em função de meu próprio trabalho e de minhas convicções pessoais, escolhi apoiar, no primeiro turno, o projeto de desenvolvimento sustentável, belamente exposto e defendido pela ex-seringueira do Acre. Confesso que me decepcionei por duas razões. A primeira porque me dei conta de que grande parte dos votos dados a ela provinha de setores religiosos fundamentalistas que suspeito nem sequer entenderam direito sua proposta política. A segunda porque Marina não teve condições, no segundo turno, de tomar posição pública a favor de um dos projetos, passando à população uma falsa independência política que acabou favorecendo o projeto neoliberal de Serra.
Desconfio que talvez o fator mais decisivo do voto de muitos da esquerda progressista na direita conservadora tenha sido o paulatino obscurecimento do olhar amoroso para com os fracos e o embotamento da sensibilidade solidária com o sofrimento alheio. Este olhar compassivo se nutre do contato vivo, direto e contínuo com as camadas mais desfavorecidas da população. Afinal, a gente acaba pensando organicamente com os pés muito mais do que com a cabeça, batendo o coração ao ritmo da paisagem que se desdobra ao nosso olhar.
Essa classe média bem intencionada e às vezes progressista e religiosa se deixa inconscientemente contaminar pela sutil infiltração das interpretações da grande mídia. E como estão confortavelmente em seus sofás, apenas incomodados com a violência que nasce de uma injustiça estrutural, longe dos tormentos da vida dos pobres, acabam vendo a pobreza como uma disfunção social, ou até um fenômeno natural, e o pobre como uma categoria estatística. Não raro acabam por se abster ou por tomar posições politicamente confortáveis, que não lhes criem embaraços na sociedade ou no emprego.
A ausência de comunhão de destino com os condenados da terra, a recusa ao toque direto em suas chagas, a falta de tempo para escutar seus gritos desesperados, o desconforto frente ao cheiro de seus andrajos e a incapacidade de olhar amorosamente o seu olhar mortiço, todas essas recusas ou incapacidades cotidianas e silenciosas acabem talvez por conduzir sorrateiramente muita gente honesta e bem-intencionada a projetos que não promovem direitos negados e impedem uma real democracia..
O povo pobre pode se enganar muitas vezes. Raramente se engana naquilo que favoreça a melhoria das condições de sua pobre vida. Por isto, parece que quem salvou o projeto de um Brasil reformado, tendencialmente mais justo e mais democrático, não foi sobretudo a esquerda histórica, nem a direita interessada, nem os intelectuais progressistas, mas sim o povo simples de nossos grotões que na hora decisiva escolheu pela continuação de um projeto de Brasil que os contemple e os veja amorosamente como gente capaz e com vontade de colaborar.