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Causa séria preocupação o ataque sistêmico que a natureza mediante um pequeníssimo e invisível vírus está movendo contra a humanidade, levando milhares à morte. Entretanto, fundamental é também a nossa reação frente à pandemia. Que lição ela nos passa? Que visão de mundo e que espécie de valores ela nos leva a desenvolver? Seguramente devemos aprender tudo o que devíamos ter aprendido e não aprendemos. Devíamos ter aprendido que somos parte dela e não os seus “senhores e donos” (Descartes). Vigora uma conexão umbilical entre ser humano e natureza. Viemos do mesmo pó cósmico como todos os demais seres e somos o elo consciente da corrente da vida.

A erosão da imagem do “pequeno deus na terra”
O mito dos modernos de que nós somos “o pequeno deus” na Terra e que podemos dispor dela ao nosso bel-prazer pois ela é inerte e sem propósito foi desfeito. Um dos pais do método científico moderno Francis Bacon dizia que devemos tratar a natureza como os esbirros da inquisição tratam suas vítimas, torturando-as até que ela entreguem todos os seus segredos       .

Pela tecnociência levamos este método até o extremo alcançando o coração da matéria e da vida. Isso se implementou com um furor inaudito ao ponto de termos destruído a sustentabilidade da natureza e assim do planeta e da vida. Desta forma, rompemos o pacto natural que existe com a Terra viva: ela nos dá tudo o que precisamos para viver e em contrapartida nós devíamos cuidá-la, preservar seus bens e serviços e dar-lhe descanso para repor tudo o que lhe tiramos para a nossa vida e progresso. Nada disso fizemos.

Por não termos observado o preceito bíblico de “guardar e cuidar do Jardim do Éden(da Terra: Gn 2,15) e ameaçado as bases ecológicas que sustentam toda vida, ela nos contra-atacou com uma arma poderosa,o coronavírus 19. Para enfrentá-lo retornamos ao método da Idade Média que superou suas pandemias mediante o isolamento social rigoroso. Para fazer o povo, amedrontado, sair à rua, na prefeitura de Munique (Marienpltatz) se construiu um engenhoso relógio com dançarinos e cucos para todos acorrerem para apreciá-lo o que é feito até os dias atuais.

A pandemia que é mais que uma crise mas uma exigência de mudança de visão de mundo e de incorporação de novos valores nos coloca esta questão: queremos verdadeiramente evitar que a natureza nos envie vírus ainda mais letais que até podem dizimar a espécie humana? Esta seria uma entre as dez que desaparecem definitivamente a cada dia. Queremos correr esse risco?

A inconsciência generalizada do fator ecológico
Já em 1962 a bióloga e escritora norte-americana Rachel Carson, autora de “Primavera Silenciosa”(Silient Spring) advertiu:” É pouco provável que as gerações futuras tolerem nossa falta de preocupação prudente pela integridade do mundo natural que sustenta toda a vida…A questão consiste em saber se alguma civilização pode levar adiante uma guerra sem tréguas contra a vida, sem se destruir a si mesma e sem perder o direito de ser chamada de civilização”.

Parece uma profecia da situação que estamos vivendo a nível planetário. Temos a impressão de que a maioria da humanidade e mesmo os líderes políticos não demonstram uma consciência suficiente dos perigos que estamos correndo com o aquecimento global, com a demasiada proximidade de nossas cidades e principalmente do agronegócio massivo da natureza virgem e das florestas que vão sendo desmatadas. Desta forma destruímos os habitats dos milhões de vírus e bactérias que acabam se transferindo para os seres humanos. Segundo sérios cientistas, não teria vindo de um morcego do mercado da China, mas simplesmente da natureza.

O coronavírus nos obrigará a nos reinventar como humanidade e remodelar de forma sustentável e includente a única Casa Comum que temos. Se prevalecer o que dominava antes, o capitalismo desenfreado e seu neoliberalismo extremado, aí sim poderemos nos preparar para o pior. Entretanto, cabe recordar que o sistema-vida passou por várias grandes dizimações (estamos dentro da sexta) mas sempre sobreviveu.

A vida pareceria – me permito uma metáfora singular – uma “praga” que ninguém até hoje conseguiu exterminar. Porque é uma “praga”bendita, ligada ao mistério do cosmogênese e daquela Energia de Fundo, misteriosa e amorosa que preside a todos os processos cósmicos e também os nossos

É imperioso que abandonemos o velho paradigma da vontade de poder e de dominação sobre tudo (o punho cerrado) na direção de um paradigma do cuidado de tudo o que existe e vive (a mão estendida) e da corresponsabilidade coletiva.

Escreveu Eric Hobsbown na última frase de seu livro A era dos extremos (1995):
”Uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nesta base, vamos fracassar. O preço do fracasso, ou seja, a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão” (p.506).

Isto significa que não podemos voltar simplesmente à situação anterior ao coronavírus.Nem pensar numa volta ao passado pré-iluminismo como quer o atual governo brasileiro e outros de extrema-direita.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escreveu Opção Terra: a solução para a Terra não cai do céu,Record 2009.