Raniero La Valle é um dos mais notáveis intelectuais leigos católicos, ex-senador e jornalista. Suas ponderações sobre a Igreja romana são altamente respeitadas mesmo por setores mais conservadores da Cúria. É de se notar que na mesma época em que reinava o Papa mais rico e poderoso da história da Igreja, Inocêncio III, o Espírito Santo fez emergir o santo mais pobre e evangélico da história espiritual cristã de todos os tempos. Este paradoxo não é sem sentido, agora atualizado pela figura do Papa que escolheu seu nome, Francisco, para sinalizar o tipo de Igreja que pensa presidir e que forma de poder que pretende exercer como estrito serviço ao amor. Publicamos este artigo aparecido na revista Rocca no dia primeiro de janeiro do corrente ano e republicada no Brasil pelo IHU de São Leopoldo de 2/5/2012. Ele serverá de orientação segura para muitos que procuram entender os primeiros gestos e passos do Papa Francisco: LBoff
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O método que escolhemos para participar das celebrações dos 50 anos do Concílio Vaticano II se revelou muito frutífero: ele consiste não em recordar, mas em um entender diferido; não restaurar a cor a imagens desfocadas, mas entender hoje, na nova situação da Igreja e do mundo, o que havia no evento do Concílio, mas que então não entendemos, coisas que então haviam ficado escondidas até aos seus principais protagonistas.
Uma coisa das quais, à época, ninguém se deu conta foi que, na Pacem in Terris, do Papa João XXIII, o seu extremo magistério antes da morte, não só havia uma grande novidade teológica e antropológica, mas também havia in nuce a reforma do papado e, portanto, da Igreja.
Essa é a conclusão a que chegou a grande assembleia eclesial intitulada Chiesa di tutti, chiesa dei poveri, que ocorreu no dia 6 de abril em Roma e já pela segunda vez em um ano.
O exame da encíclica joanina remeteu à história da sua redação, cujos documentos foram magistralmente publicados porAlberto Melloni. Desses documentos, resulta a perfeita consciência por parte do papa e dos seus teólogos de confiança que os conteúdos da encíclica – o reconhecimento a cada ser humano do direito à liberdade; a liberdade no mesmo plano da verdade, da justiça e do amor; a perfeita igualdade de direitos e de deveres da mulher e do homem – eram a inversão de um constante magistério pontifício do século XIX da Mirari Vos, de Gregório XVI, a Pio IX e até Pio XII.
Uma Igreja que vinha do mito da infalibilidade e de um papado construído no segundo milênio como um poder superior a qualquer outro poder não poderia mudar um magistério conclamado e recorrente do papa se não fosse o próprio papa que fizesse isso; e não era fácil pensar nisso depois que Gregório VII havia feito do pontífice o único episcopus universalis do qual os príncipes deviam beijar os pés, depois que Inocêncio III, a figura dialética de São Francisco, havia estabelecido o direito do papa de exercer o poder até mesmo temporal, para remediar o pecado, e depois que Bonifácio VIII havia reivindicado como necessária a submissão ao Romano Pontífice de toda criatura humana.
E aí se encontra a novidade de João XXIII: a autocrítica do magistério e a autorreforma do papado. Essa instância de uma reforma do papado, depois, pareceu entrar em letargia nos 50 anos posteriores à encíclica, mas eis que hoje retorna como possível. A surpresa foi Bergoglio, desde a escolha do nome, como se dissesse que se recomeça não a partir deInocêncio III, mas de Francisco de Assis, não do sobrecarregamento da instituição, mas da leveza da profecia; o fato de se inclinar ao beijo dos pés dos presos, na noite de Quinta-Feira Santa, resgata a antiga pretensão do papa de que a ele todos os príncipes beijassem os pés, o beijo do pé da jovem presa de longos cabelos pretos restituía à mulher aquele gesto de veneração e de afeto que a pecadora havia feito banhando os pés de Jesus com lágrimas, secando-os com os seus cabelos, beijando-os e derramando óleo perfumado sobre eles.
Pedro, nisto verdadeiramente vigário de Jesus, pagava a dívida de amor do seu mestre, novamente tocada o corpo de uma mulher até agora sempre mantido escondido e temido na Igreja. E, talvez, justamente isso signifique a reforma do papado. Por exemplo, isso significa, como explicou o Papa Francisco na homilia para o início do seu pontificado, que “certamente Jesus Cristo deu um poder a Pedro, mas de que poder se trata? Trata-se de um poder que é o serviço”.
A reforma do papado significa anunciar um Deus que é só perdão e misericórdia, um Deus que “julga amando-nos”, como disse Francisco na Via Sacra no Coliseu. Não um Deus que julga e ama, como logo traduziram os vulgarizadores que não se dão conta das novidades; porque isto, o fato de dispensar ao mesmo tempo amor e julgamento, a Igreja daInquisição também fazia.
Trata-se, ao invés, de um Deus em quem não há julgamento, porque o amor é o julgamento: o que o papa disse é que não há uma misericórdia ao lado do julgamento, mas, como pensava Isaac de Nínive, a própria misericórdia é o julgamento; e o papa aprendeu essa misericórdia com os livros do cardeal Kasper, além das palavras de uma humilde avó de Buenos Aires, como ele disse no seu primeiro Ângelus da janela de um quarto que não é mais o seu.
E, naturalmente, a reforma do papado significa reforma da Cúria, significa colegialidade, significa pobreza. E, acima de tudo, significa que nenhuma reforma, mas também nenhuma conservação, pode ser feita por um papado, por uma Igreja sem povo, isto é, sem os discípulos, sem as mulheres, sem as mães que decidem o número dos filhos, sem os divorciados, sem os homossexuais, sem os estrangeiros, sem os imigrantes, sem os pobres, sem os últimos.
Certamente, será muito difícil para Francisco empreender essa reforma. Mas, se ele a quiser fazer, nós, Igreja, estamos aqui.
Esse papa é uma esperança de renovaçao, humildade e um rumo para um bilháo de católicos cada vez mais náo praticantes.
NOS…IGREJA ESTAMOS AQUI…ISTO É BOM !MUITO BOM…
Com certeza, caro Leonardo. Todo esse povo que foi elencado no final desse artigo espera ansioso pela misericórdia e pelos gestos de acolhida por parte da Igreja. Espera sentir a presença de uma Igreja mas solidária e que faça suas “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem…”. Queremos uma Igreja que não procure as glórias do mundo, nem títulos ou privilégios; mas que caminhe junto com a humanidade, anunciando a Boa Nova do Reino de Deus, com palavras e gestos.
Na mensagem de hoje, o Sr. – como possivelmente muitos outros libertadores -, parece querer influenciar as decisões do Papa Francisco, para que ele continue humilde e não se torne mais um Imperador como o foram os seus dois últimos antecessores. Provavelmente será um Papa humilde, mas dificilmente um libertador; poderá não demonstrar poder, mas certamente vai querer estar ao lado dele.
Tudo muito belo, mas chegou a hora da Igreja também se conscientizar de que ela não é a dona do mundo e que Deus por certo é Ecumênico e se preocupa com todos os homens e instituições e cultos religiosos e não tão somente com a Igreja Católica Apostólica Romana.
DIOS ILUMINE TODO EL CAMINO DE FRANCISCO, EL PAPA DEL FIN DEL MUNDO.
EN ESPECIAL EN SU PRÉDICA UNIVERSAL DE AMOR POR LA JUSTICIA SOCIAL Y EL CUIDADO DE “ESTA, NUESTRA ÚNICA TIERRA”…
Interessante saber essas coisas que o sr. traz em seus textos. Não vejo a hora de aplicá-las em algum trabalho. Sempre acompanha o fato( cerne da questão) jurisprudências. Muito valiosas, encerram o trabalho,a dúvida, praticamente,mas, eu, gosto de inovar: trago trechos literários como:” A Justiça é o pão do povo, às vezes muita às vezes pouca de Brechdt e, outros.As excelências gostam…risos.. Nem sempre ganho mas, pelo menos, não fiz da advogacia uma repetição. Um abraço, Isabel
Advocacia, por amor de Dios!
Seu texto me enche de fé e de esperança, mas ao mesmo tempo de muitas dúvidas também: como podemos saber se essa intenção tão pura, humilde e humanitária, inerente ao Papa Francisco, também é autêntica por parte do Vaticano como um todo, ou se, ao contrário, é algo intencional, calculado e meticulosamente planejado pelo lado “não tão humilde” do Vaticano, já que a Igreja vem perdendo tantos fiéis ao longo dos anos? Como saber se essa maravilhosa novidade não passa de uma estratégia de marketing religioso da era moderna? Não questiono a verdade do Papa Francisco, eu questiono apenas se ele não estaria sendo usado por uma fortíssima e bem estruturada máquina de poder, ambiciosa e competitiva, para representar algo que o povo espera de um Papa, e que ele realmente possui, mas que, justamente por ser puro e humilde, não terá forças para lutar contra, e acabará sendo um fantoche nas mãos de interesses maiores que estão por trás das cortinas?
Obrigado pelo artigo professor LEONARDO, cada vez aprendo mais.
Caro Leonardo Boff,
Na sua lista de “inclusão” esqueceu-se de alguém…
«sem as mães que decidem o número dos filhos, sem os divorciados, sem os homossexuais, sem os estrangeiros»
…sem os filhos cuja morte, não apenas o “número” suas mães decidiram, não é? Tente reformular uma lista que não escorra sangue e talvez os cristãos se possam rever nela.
Paz!
Luis Botelho
Pena que Leonardo se esqueceu de falar nas maiores vítimas da actualidade, os Inocentes que são assassinados no ventre materno.
Esperemos que proximamente não se esqueça de os enunciar.
Achei todos os parágrafos muito bonitos, realço: ” O método… ele consiste não em recordar,mas em um entender diferido , não restaurar a cor a imagens desfocadas, mas entender hoje na nova situação…” Um abraço, Isabel
São muitos os desafios a serem afrontados. Um deles é o debate entre a ortodoxia e a ortopraxia, que esfriou o “modus operandi” dos Cardeais que viraram Papas, visto que o peso das decisões de um Papa engloba mudanças mundiais. São jogos de xadrez complicados, onde o Papa tem em sua frente várias mesas e vários jogadores, disputando cada qual com sua especialidade lógica de movimentos e o Papa tendo que entender a cada um e fazer o movimento rumo ao xeque-mate, sem se esquecer, e aqui é a complexidade do jogo vaticanista, que a vitória de uma mesa interfere nos próximos movimentos das outras mesas. Nenhum movimento inocente é cabível, mesmo que popular. A fidelidade da Igreja ao projeto de Jesus Cristo tem que ser a luz que deve iluminar os escuros caminhos das decisões certas para todos, para que o direito das pessoas e dos povos sejam respeitados. Quanto o do Vaticano II, de Puebla, Medellin e Santo Domingo não está em prática hoje na Igreja? Se o Papa Francisco conseguir avivar as boas práticas que ficaram obscurecidas destes debates, que não passam de necessidades que a Igreja já tinha na ocasião, e que talvez tiveram motivos desconhecidos por nós para assim continuarem sob a poeira do esquecimento, aí sim poderemos viver um novo tempo religioso, um novo tempo de fraternidade cristã, uma modo correto de celebrar o “FAZEI TUDO EM MEMÓRIA DE MIM”.
Realmente Leonardo Boff é um teólogo que conhece de perto a realidade da Cúria Romana e do Papado. Sabe que precisa urgentemente de uma reforma, e que esta reforma seja à luz da ação do Espírito Santo.. Precisamos de uma Igreja renovada, isto é, tendo como modelo as primeiras comunidades cristãs: mais unidade,mais partilha, mais misericordiosa com os excluídos e marginalizados, uma Igreja acolhedora, onde homens e mulheres, negros e brancos, “normais” e deficientes,hetero,bissexuais e homossexuais, ricos e pobres…,etc sejam respeitados na sua dignidade e inseridos nas comunidades eclesiais, como protagonistas de suas próprias histórias. Deixo aqui meu carinhoso abraço ao querido Leonardo Boff.