Em razão do meu “ciganismo intelectual” falando em muitos lugares e ambientes sobre um sem número de temas que vão da espiritualidade, à responsabilidade socioambiental e até sobre a possibilidade do fim de nossa espécie, os organizadores, por deferência, costumam me convidar para um bom restaurante da cidade. Lógico, guardo a boa tradição franciscana e celebro os pratos com comentários laudatórios. Mas me sobra sempre pequeno amargor na boca, impedindo que o comer seja uma celebração. Lembro que a maioria das pessoas amigas não podem desfrutar destas comidas e especialmente os milhões e milhões de famintos do mundo. Parece-me que lhes estou roubando a comida da boca. Como celebrar a generosidade dos amigos e da Mãe Terra, se, nas palavras de Gandhi,”a fome é um insulto e a forma de violência mais assassina que existe?”
É neste contexto que me vem à mente como consolo os botecos. Gosto de freqüentá-los, pois aí posso comer sem má consciência. Eles se encontram em todo mundo, também nas comunidades pobres nas quais, por anos, trabalhei. Ai se vive uma real democracia: o boteco ou o pé sujo (o boteco de pessoas com menos poder aquisitivo) acolhe todo mundo. Pode-se encontrar lá tomando seu chope um professor universitário ao lado de um peão da construção civil, um ator de teatro na mesa com um malandro, até com um bêbado tomando seu traguinho. É só chegar, ir sentando e logo gritar: “me traga um chope estupidamente gelado”.
O boteco é mais que seu visual, com azulejos de cores fortes, com o santo protetor na parede, geralmente um Santo Antônio com o Menino Jesus, o símbolo do time de estimação e as propagandas coloridas de bebidas. O boteco é um estado de espírito, o lugar do encontro com os amigos e os vizinhos, da conversa fiada, da discussão sobre o último jogo de futebol, dos comentários da novela preferida, da crítica aos políticos e dos palavrões bem merecidos contra os corruptos. Todos logo se enturmam num espírito comunitário em estado nascente. Aqui ninguém é rico ou pobre. É simplesmente gente que se expressa como gente, usando a gíria popular. Há muito humor, piadas e bravatas. Às vezes, como em Minas, se improvisa até uma cantoria que alguém acompanha ao violão.
Ninguém repara nas condições gerais do balcão ou das mesinhas. O importante é que o copo esteja bem lavado e sem gordura senão estraga o colarinho cremoso do chope que deve ter uns três dedos. Ninguém se incomoda com o chão e o estado do banheiro.
Os nomes dos botecos são os mais diversos, dependendo da região do pais. Pode ser a Adega da Velha, o Bar do Sacha, o boteco do Seo Gomes, o Bar do Giba, o Botequim do Jóia, o Pavão Azul, a Confraria do Bode Cheiroso, a Casa Cheia e outros. Belo Horizonte é a cidade que mais botecos possui, realizando até, cada ano, um concurso da melhor comida de boteco.
Os pratos também são variados, geralmente, elaborados a partir de receitas caseiras e regionais: a carne de sol do Nordeste, a carne de porco e o tutu de Minas. Os nomes são ingeniosos:” mexidoido chapado”, “porconóbis de sabugosa”, “costela de Adão” (costelinha de porco com mandioca), “torresminho de barriga”. Há um prato que aprecio sobremaneira, oferecido no Mercado Central de Belo Horizonte e que foi premiado num dos concursos:”bife de fígado acebolado com jiló”. Se depender de mim, este prato deverá constar no menu do banquete do Reino dos céus que o Pai celeste vai oferecer aos benaventurados.
Se bem repararmos, o boteco desempenha uma função cidadã: dá aos freqüentadores especialmente aos mais assíduos, o sentimento de pertença à cidade ou ao bairro. Não havendo outros lugares de entretenimento e de lazer, permite que as pessoas se encontrem, esqueçam seu status social e vivam uma igualdade, geralmente, negada no cotidiano.
Para mim o boteco é uma metáfora da comensalidade sonhada por Jesus, lugar onde todos podem sentar à mesa e celebrar o convívio fraterno e fazer do comer, uma comunhão. E para mim, é o lugar onde posso comer sem má consciência.
Dedico este texto ao cartunista e amigo Jaguar que aprecia botecos.
Abrazos desde Paraguay. Sí!!! ese bife de higado en BH es una DELICIA!!!
En México se llama Higado encebollado. Es delicioso. si vienen, no dejen de ir al Restaurante Lincon que queda muy cerca de la Alameda central
Muito bom o texto!
Boteco é igual a praia, lugar mais democrático impossível.
Acho que vou tomar uma gelada!
abs
ADOREI O BOTECO,ACHEI SESACIONAL. ESTOU INDO PASSEAR E BH E ME DESTES BÕAS DICAS DE BOTECOS. CURTO MUITO VOCÊ. DEUS LHE CUIDE. ABRS DA NOKA REQUIAO.
el bar es el lugar donde los olores, los colores, los amores y dolores nos hermanan. Me encanto!!!
Uma pena boteco ser tão afanado, qndo se tem venda de uma droga licita, como o alcool, e enquanto isso moralistas de plantão dizem da maconha e dos estudantes da USP… Mas não deixo de concordar com o texto, muito bom…
Tem um artigo do Frei Betto q li esses dias q diz sobre o alcool;
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=62114
Antes eram praças academias, hj botecos… vai entender…
Espero um dia poder beber em sua companhia!! \o/
e um dia cheguei a pensar que só tinha esse sentimento como o senhor descreveu, o gosto amargo de desfrutar das “boas coisas da vida” em meio a nossa sociedade tão desigual.
Um VIVA ao botecos! Abraços.
Caro colega Boff,
parabéns pelo descontraído e reflexivo artigo. Há muito tempo eu já costumava brincar com as pessoas dizendo que ia para o boteco fazer botecoterapia. Pois é, mas na verdade, no boteco vamos além da terapia coletiva. Lá temos a oportunidade de discutir qualquer assunto de forma completamente democrática, e além disso, experimentamos o que é uma verdadeira teologia na mesa (cito o termo do colega Damasceno Pena), todos são bem vindos, ricos e pobres, intelectuais e analfabetos, todos são convidados a participar daquela comunhão, flamenguistas, botafoguenses, tricolores, vascaínos e até americanos rsrs. No boteco só não há lugar para os fariseus modernos, porém, existem até alguns que circulam por lá nas madrugadas igual Nicodemos quando foi encontrar com Jesus nas altas horas. É local de comunhão entre maçons, rosacruzes, crentes libertos das grades, católicos, espíritas, budistas, etc. Todos ali parecem estar num constante êxtase pentecostes de Atos, falando em suas línguas e expressões culturais e todos se entendendo numa boa. Todos ali colocam a mão no mesmo prato de tira gostos como na cena da santa ceia, o pedreiro, o porteiro, o morador do condomínio luxuoso, o mendigo
e todos demais. Lembro de uma passagem de um RAP do grupo de periferia RACIONAIS MC chamado o “Homem na estrada”, onde ele fala que na comunidade só existe o boteco e o candomblé pra receber uma benção.
PARABÉNS! Um fraterno abraço,
Kadu Santoro
http://www.jornaldespertar.blogspot.com
Parabéns Leonardo e muito obrigado por esse texto sensacional!
Lembrei da minha juventude em Minas Gerais, nessa época eu e meus amigos eramos frequentadores assíduos de boteco, em especial do Bar do Gordo.
A cidade era pequena e o local onde nos encontrávamos quase todos os fins de semana era lá.
Não havia status e todos por mais diferentes que fossemos celebrávamos juntos, exatamente como você descreveu tão bem.
Enfim, vou ver se relembro essa época e vou num boteco tomar uma!
Grande abraço!
Sou um fã incondicional… abraço!!!
bem vindo o seu “ciganismo intelectual” com amenidades nos fala de algo tão sério..andarilho eu perto do senhor… um abraço!
Caro colega Boff,
parabéns pelo descontraído e reflexivo artigo. Há muito tempo eu já costumava brincar com as pessoas dizendo que ia para o boteco fazer botecoterapia. Pois é, mas na verdade, no boteco vamos além da terapia coletiva. Lá temos a oportunidade de discutir qualquer assunto de forma completamente democrática, e além disso, experimentamos o que é uma verdadeira teologia na mesa (cito o termo do colega Damasceno Pena), todos são bem vindos, ricos e pobres, intelectuais e analfabetos, todos são convidados a participar daquela comunhão, flamenguistas, botafoguenses, tricolores, vascaínos e até americanos rsrs. No boteco só não há lugar para os fariseus modernos, porém, existem até alguns que circulam por lá nas madrugadas igual Nicodemos quando foi encontrar com Jesus nas altas horas. É local de comunhão entre maçons, rosacruzes, crentes libertos das grades, católicos, espíritas, budistas, etc. Todos ali parecem estar num constante êxtase pentecostes de Atos, falando em suas línguas e expressões culturais e todos se entendendo numa boa. Todos ali colocam a mão no mesmo prato de tira gostos como na cena da santa ceia, o pedreiro, o porteiro, o morador do condomínio luxuoso, o mendigo
e todos demais. Lembro de uma passagem de um RAP do grupo de periferia RACIONAIS MC chamado o “Homem na estrada”, onde ele fala que na comunidade só existe o boteco e o candomblé pra receber uma benção.
PARABÉNS! Um fraterno abraço,
Kadu Santoro
[…]:”bife de fígado acebolado com jiló”. Se depender de mim, este prato deverá constar no menu do banquete do Reino dos céus que o Pai celeste vai oferecer aos benaventurados”.
Lindo texto. Quem sabe um dia o sentimento de igualdade encontrado nos botecos possa de vez fazer parte da vida de nós todos.
Em tempo:
Mestre dá pra acrescentar neste menu “rabada com agrião, torresminho, costelinha de porco com Ora-pro-nobis, Andú c/Ovo e Costelinha”?. Como bom mineiro que sou, filho da tradição sertaneza de que fala Guimarães Rosa, essas e outras iguarias – literalmente comida de boteco – não podem faltar à mesa. Aliás, são comidas que frequentam a mesa daqueles que não podem frequentar os bons restaurantes. Ah! Também não pode faltar uma boa cachaçinha como aperitivo para ser apreciada com comedimento, não é?
Abraços Gilson
HELLO, OLA, OI
What´s up?
Estou quase trilingue…
Hey Boff já fazem 43 dias que larguei o Valium e voltei a viver (Do Luto e das Perdas)
ainda “vamô” toma umas bira junto num buteko da vida…se DEUS quiser.
Adorei seu texto, realmente em um boteco somos todos iguais…o problema é quando a conta sobra só para um dos tantos “amigos” butequeiros rs rs rs
Te amo irmão! ( no sentido budista de amar , entende?)
Louis Frener
Espetacular essa descrição do boteco. Chega fiquei emocionada de lembrar das varias historias vividas nos butecos com os amigos 🙂
Infeliz Brasília que nao tem butecos. muito bom o artigo.
UMA RESPOSTA GERAL
Agradeço a todos os que comentararam o texto sobre o boteco, especialmente, os mineiros que são os campiões dos botecos.
Até teologia entrou nos comentários (Kadu Santoro) e boas sugestões que vou guardar (Gilson Alves Barbosa).
Muitos ressuscitaram belas recordações de seus tempos de estudantes e de encontro com os amigos.
O boteco realiza a democracia real onde a confraternização se faz em torno da conversa, do comer e beber e é o lugar onde finalmente nos livramos dos doutrinadores e professores que tudo sabem e pouco da vida cotidiana, informal (Emanuelly/ Arildo e outros).
A maioria acha que teólogo é chato e só sabe abordar coisas da outra vida, a eterna. O céu começa aqui, no tempo e se não o anteciparmos com o espírito dos botecos, não vamos a céu nenhum. Talvez escapei desta vez de ser chato….de profissão.
Um abraço a todos e saúde seja com uma cervejinha gelada ou um gole de uma branquinha mineira.
Lboff
PS. antecipando-me aos críticos: um dos maiores milagres de Jesus foi transformar água em vinho, enquanto muitas igrejas transformam vinho em água. A alegria de viver no comer e beber pertence à vida plena. Vejam mu livrinho pela Vozes: Comer, beber e viver em paz (vol.III: Virtudes para um outro mundo possivel 2007).
Valeu msm, não postou meu comentário sobre não poder o “tapa na pantera”… então viva a cachaça, cerveja e o cigarro… tudo bem… abçs e até!
Saúde, Leonardo. Comungo com seus sentimentos carinhosos a respeito do bar e seus frequentadores. Fica aqui o meu convite para degustarmos juntos um sanduiche de pernil com abacaxi no pão francês no Cervantes de Copacabana, numa de suas vindas ao Rio. Saúde, meu irmão.
Está faltando bebida nesse boteco. A Santa Ceia, por exemplo, seria uma mesa de boteco: gente pobre arrumando um grude e uma moringa de vinho para celebrar a Páscoa? Pois nesse boteco teria vinho local. Poderia ter cerveja, improvável, pois mais cara, importada que era. E uma pinga se o evento tivesse acontecido nos sítio de Nova Jerusalém.
Ótimo texto.
Fico feliz em ler Leonardo Boff por aqui…gostaria ,que as prais fossem mesmo lugares democrático. Mas não são o que é lamentavel.Poder saborear a inteligencia gigante de Leonardo Boff…em si é um ato mantra plural.
LuciadiFatima
Senhor Boff.
Estou surpreso! O Sr. acha que não muita coincidência o mesmo fio condutor, com palavras e idéias sinônimas, escritas há mais de três anos ? E que perambula desde então, sem rumo na web e também num blog de amiga socióloga desde junho deste ano?
Álvaro Falcão
um pobre e anônimo professor da UFMG, aposentado
___________________________________________________________
Uma Radiografia Bem Humorada do Boteco
Álvaro Falcão*
Tira-gosto típico de boteco. Foto obtida na net por Álvaro Falcão
Já se disse que o boteco é uma instituição democrática. Não é novidade. Todos nós sabemos que é um lugar sagrado, onde se fazem revoluções, revelam-se poetas e compositores, choram-se amores incompreendidos, rompidos ou não correspondidos, trucidam-se chefes tirânicos e sogras venenosas, tramam-se aventuras que jamais serão realizadas e selam-se pactos de paz.
É onde, também, são celebradas a vida e a morte, aniversários, despedidas da vida solteira, chora-se e bebe-se nos pós-enterros de amigos que foram bebericar nas mesas eternas.
Não há nenhum vivente, mesmo o de juízo perfeito e reputação insuspeita, que não tenha passagens memoráveis por esses santuários da liberdade, do aconchego e da camaradagem.
Houve época em que quase todos fomos “estudantes de república”, recém-saídos da casa dos pais, quando tivemos nossos rituais de passagem conduzidos precisamente nos botecos da vida. Esses rituais, como um batismo religioso, marcam o espírito do aspirante a adulto como um sinete que jamais será removido.
Todas as cidades brasileiras têm botecos antológicos. Por isso, os botecos são um patrimônio nacional, sem que haja tombamento formal. E como formam uma instituição não tombada, sem IPHAN para regulá-los, possuem suas próprias regras, seu modo de se relacionar com a clientela e com vizinhos, de gerir sua economia interna, sem notas fiscais, recibos ou declarações. Quando muito, e só por força de lei, têm alvará de funcionamento emitido pelo alcaide local. Mas uma coisa é certa: todos os botecos/bares clássicos, dignos dos nomes que ostentam nos seus pórticos, possuem traços comuns.
O estabelecimento quase nunca é batizado com nome estrangeiro; na maioria das vezes toma o nome ou apelido do dono ou dona: Bar do João, Bar da Chininha, Bar do Mané Doido, Bar do Pelé, Bar do Bigode. Ou ainda, trazem nomes pitorescos, como Bar Bante, Bar da Jia (esse é de Fortaleza; prepara rãs que o freguês escolhe, ainda vivas, num tanque), Pé de Porco e outros, sempre criativos.
Refeição típica de boteco. O volume da comida indica que será compartilhada por várias pessoas.
Foto de Arnaldo Silva. Todos os direitos reservados
Em boteco de respeito, no alto das prateleiras de bebidas, ou na parede do canto, sempre tem um oratoriozinho com a imagem do santo da devoção do dono. Na galeria dos mais encontradiços, São Jorge, São Judas Tadeu e Nossa Senhora Aparecida. Mas têm que ser consideradas as preferências regionais; no nordeste, Padre Cícero é quem reina; no Pará, Nossa Senhora de Nazaré impera; na Bahia, Senhor do Bonfim ou a inconfundível imagem de Iemanjá, com seu manto azul claro. No Rio de Janeiro, São Jorge dá as cartas e, em São Paulo, quem domina é Nossa Senhora Aparecida. Como ornamento, flores de plástico, sempre muito coloridas e, na maioria das vezes, uma lampadinha acesa no meio da florada, empoeirada e com cocozinhos de moscas. Na entrada do boteco, há um vaso (onde se lê “vaso”, leia-se “uma lata de tinta de vinte litros”) com mudas de espada de São Jorge, de comigo-ninguém-pode e arruda, pois olho gordo e inveja são fregueses indesejáveis. De quando em vez, uma pimenteira, que também afasta coisa ruim. Em cima de uma das geladeiras, um rádio sintonizado em emissora popular faz o som ambiente. Programas do tipo “show da tarde”, de apresentadores piadistas, em que há conversas telefônicas ao vivo com as donas-de-casa ouvintes e atendem-se pedidos de músicas. Em noites de jogo de campeonato, uma televisão de vinte-e-nove é o chamarisco que faz lotar as mesas.
As prateleiras exibem bebidas de dose, a maioria de marcas alternativas; bebidas de marcas famosas são poucas, não cativam o freqüentador desse tipo de estabelecimento. As garrafas são de afamados “cortezanos”, amargos, jurubebas, leões do norte e do sul, conhaques de gengibre, fogos paulistas, batidas de ovos, coquinhos e assemelhados. Um clássico é o São João da Barra; onipresente, tem saída certa.
Cachaças, ou melhor, aguardentes, são as industriais de destilação contínua. Cachaça fina, de alambique artesanal e procedência conhecida, nem pensar, a dose é cara. Porém, debaixo do balcão sempre tem um garrafão com uma legítima “da roça”, sabe-se lá de onde veio, que fica escondida sob o dito cujo, porque a vigilância sanitária (quando há…) pode multar e confiscar. A pinga é servida ao natural ou com um tiquinho de vermute escuro, mistura batizada de traçado ou rabo de galo. Há os que pedem a pinga com um amargo qualquer; os da velha guarda gostam do fernete ou do undebergue.
Um detalhe importante: a gordura faz o décor das garrafas das prateleiras, sempre embaçadas pelo filme do óleo das frituras e pela poeira agregada.
As cervejas, tem de todas as marcas: Skol, Brahma, Antarctica, mas o que sai mais é Kaiser, Cintra, Schincariol, Glacial, Krill… em garrafas retornáveis de 600 ml. O preço gira em torno de dois real, senão espanta os clientes, quer sejam estudantes, comerciários, chapas de caminhão ou varredores de rua. Boteco que se preza não vende latinha ou long neck, coisa de bar grã-fino. Mas, se o freguês for comer um p.f., esteja certo que vai pedir uma Caracu ou Malzbier.
Refrigerantes são sempre de garrafa, dizem que são melhores em sabor, que não dá para comparar o refrigerante de latinha com o de garrafa. Bebe-se no bico mesmo, não tem copo descartável. Canudinho? Luxo impensável. Ademais, na verdade, quem toma refrigerante em boteco, não é habitué, quase sempre é passante, freguês ocasional com sede, que faz cara feia para os copos botecários. Por isso, bebe no bico mesmo.
Um detalhe: a tampinha das garrafas é sempre atirada na rua; os carros que passam, vão calçando as tampas no asfalto quente, compondo um mosaico ímpar, inimitável. Dos tempos de menino de interior, essa é uma forte lembrança que guardei das esporádicas vindas a Belzonte. É que no interior a gente não tinha rua asfaltada, só pavimento de pé-de-moleque ou rua de terra.
Na parede, atrás do balcão, um verdadeiro mural, onde estão expostos os mais variados exemplares da cultura kitsch. Há os tradicionais avisos “Fiado Só Amanhã”, “Fiz acordo com as bancos: eles não vendem cachaça e eu não aceito cheque”. Para marcar o tempo, uma folhinha do Coração de Jesus ou calendário de alguma loja de ferragens. Um cartaz com aviso do próximo jogo do time de várzea do bairro. Foto de time de futebol? Tem também e mais alguns pôsteres, das folhas centrais do caderno de esportes do jornal, dos campeões de campeonatos passados.
Boteco tem que vender cigarro, senão os boêmios vão parar noutra freguesia. Fuma-se descontraidamente, lei antitabaco é uma coisa da qual já se ouviu falar, apenas. Predominam as marcas mais baratas, algumas jamais vistas, pois as fábricas de fundo de quintal del Paraguay são centenas e os “fornecedores” vêm e vão, ao sabor da fiscalização de fronteira. Marcas como Olé, Aristocrata, Finesse, Embaixador ou nomes parecidos. E tem que vender picado, muitos fumam no varejo. O isqueiro é preso a uma correntinha, parafusada no balcão, para evitar extravios.
Cardápio, às vezes tem. As iguarias e as bebidas são listadas com fartura de erros ortográficos, principalmente se têm nome estrangeiro: Fígado Assebolado, Batata Sutê. Wisk Druris, Gim Fris… Alguns cardápios trazem frases hilárias, pensamentos ou a mais legítima filosofia de boteco. No Bar do João, por exemplo, tem uma frase lapidar no cardápio: “Proibido entrar bêbado. Sair, pode”.
Muitos botecos também têm um quadro-negro, na entrada, onde o prato do dia e outros petiscos são anunciados com giz, também com inevitáveis escorregões de grafia: “Sevi Servis sem Balansa”, Drobadinha, Pão com Linguisa, Mechidão Ispecial, Salchicha Inpanada, Carne Muida Com Aroz…
As comidas da categoria tira-gosto são variadas; muitas delas já prontas numa estufa sobre o balcão, com vidros embaçados: cascudo frito, torresmos “de barriga” enormes, carne cozida (maçã de peito) em molhos com direito ao sobrenadante de gordura semi-sólida, moelas em molho idem, pés de porco, salgados de formato indecifrável, que parecem quibes, pedaços de lingüiça “da roça” e negros chouriços que, de tão grandes, dão pra matar umas três pingas.
Um tiragosto emblemático, dos velhos tempos, é o ovo cozido, com a casca colorida. Hoje anda meio sumido, preterido que foi pelos petiscos mais modernos. Antigamente, o amarelo era dado pelo açafrão, o vermelho pelo colorau, o arroxeado pela fatia de beterraba, o verde pelo espinafre ou agrião, que eram adicionados à água do cozimento. Disseram-me que hoje botam pó de Q-Suco na água para tingir os ovos. Tesconjuro, por tamanha heresia! Coisa de botequineiro sem alma!
Meu amigo Peter, companheiro de jornadas botequinescas, que já subiu para libar nos bares etéreos, gostava mesmo era de um ovo cru. Com rara habilidade, fazia dois furinhos, destamaninhos, um em cada extremidade do ovo, e sorvia o conteúdo num segundo, depois de entornar um traçado destamanhão!
Pastéis de carne ou de queijo são outra delícia encontradiça nas estufas, ao lado das salsichas empanadas e salsichões esturricados. Reza a tradição que, para se saber de que é feito o pastel, há que ser observador: após a primeira mordida, se o cidadão avistar batata dentro do pastel, o dito cujo é de carne, se não vislumbrar nada, na certa é de queijo.
Ainda no item “comidas”, as iguarias do bar tradicional têm, nos grandes vidros de conserva artesanal, suas melhores tradições. Ovos de codorna, cebolinhas, batatinhas miúdas com casca, e, de vez em quando, uma “sacanagem”- o enroladinho de salame ou mortadela (mortandela, em botequinês) com pimentão ou cenoura – imersos num líquido avinagrado de composição não sabida. Pimenta nesta salmoura é obrigatória, e muita. Também há vidrões com não menos gordíssimas azeitonas, o líquido sempre com uma espuminha branca. A cultura alquímica do botequim ensina que esse líquido, a salmoura da azeitona, ressuscita qualquer bêbado, por mais apagado que esteja. Meio copo goela abaixo e o bebum está novo!
Os condimentos, molho de pimenta, “quetichupe”, mostarda, molho inglês (raro!) e sal, para adubar o tira-gosto, são acondicionados em bisnagas de plástico, sempre engorduradas pelo manuseio, raramente limpas ou lavadas. Os paliteiros e os dispensadores de guardanapos seguem a mesma linha: sempre encardidos. O papel do guardanapo é do padrão liso, escorrega e não limpa os bigodes. Havendo azeite, de azeite quase só tem o nome. Nomes desconhecidos, geralmente são de procedência porteña, mais baratos, mas “das melhores regiões produtoras”, garante o rótulo. Quando é marca portuguesa de tradição, só a lata é original. Quase sempre são “injetadas” com óleo de soja, para render mais. O buraquinho é microscópico. Conheço uma pessoa que se intitula “o maior estuprador de latas de azeite de boteco de Belzonte”, porque enfia certeiramente um dente do garfo no micro furo e abre um buracão tal que a lata se esvai em ”azeite” na primeira servida do óleo.
Mesas e cadeiras poucas são de madeira. Hoje a maioria é de plástico, com publicidade da cerveja mais consumida no bar. A mesa nunca tem toalha; quando muito – suprema cortesia – botam uma folha grande de papel manilha cobrindo-a. Nas raras vezes em que é de madeira e tem toalha de tecido, essa é sempre coberta por plástico grosso, transparente, invariavelmente pegajoso (não seria pregajoso?) por causa da gordura, cuja finalidade parece ser colar os antebraços do incauto libador que ousa nela apoiá-los.
Cozinheiro ou cozinheira são geralmente gorduchos de tanto petiscar nas panelas; andam calçados com o popular chinelo-de-dedo. Esse calçado é, pode-se dizer, a versão atualizada dos tamancos de madeira, que eram usados pelos nossos queridos patrícios bigodudos d’além mar, os legítimos inventores do botequim. O avental, quando há, um dia foi branco. Jogado displicentemente no ombro, um pano de pratos, não menos encardido, uma espécie de dublê de pano de mão, lenço pra limpar o suor, pano de balcão ou paninho de bunda, como se diz jocosamente, longe dos ouvidos das sinhôras. Na cabeça, um boné de propaganda, mimo da firma de um freguês assíduo ou do depósito de material de construção do bairro.
O dono do boteco geralmente também é garçom, caixa, juiz, segurança, psicólogo, técnico de futebol, enfermeiro e repórter da vida alheia. De vez em quando, limpa o chão e as mesas, controla um bêbado mais exaltado e dilui um saldifruta para ele, serve as bebidas, esquenta o tira-gosto, acende um cigarro, fuma o cigarro, serve o tira-gosto, coça a cabeça, lava os copos, não enxuga os copos, conversa fiado, coça o sovado, apresenta a conta feita com uma caneta tirada da orelha (a dolorosa vem sempre num pedaço de papel aproveitado do pacote de cigarros), recolhe o dinheiro, faz o troco, coça o nariz, enfia a caneta Bic de novo atrás da orelha, conta um causo. Com a barba sempre por fazer, veste-se com a camisa do time de futebol do seu coração ou uma camiseta de campanha de um candidato a vereador que ele não conhece. Também vale camisa de propaganda de bebidas, cortesia do dono da distribuidora, este sim, seu conhecido.
Todo bar ou boteco de tradição tem seus bêbados de estimação, pratas da casa que, embora queridos, não têm crédito, o direito de pendurar conta. Todos os conhecem, estão lá diariamente, batem o ponto, tomam suas pingas, falam mal do governo, xingam o presidente do seu time, comentam o acidente que houve ali na esquina, especulam a vida da senhora que mora na rua de cima e que se separou do marido no mês passado. São populares e inofensivos, prestativos e solidários, na sua grande maioria.
E o banheiro? Vaso sem tampa, papel nunca tem, piso inundado, a descarga não funciona, nunca é lavado. De vez em quando, jogam um desodorizante de eucalipto, travestido de desinfetante, mero disfarçador de cheiros de amônia. Como se vê, “banheiro” é força de expressão, na verdade, é só um lugar para se verter o subproduto da cerveja.
Boteco também tem bicho. Do lado de fora, um vira-latas magricela, olhar pidão, que nunca passa da calçada, pois, por experiências muitas, aprendeu que, se entrar, leva um bicudo. De quando em vez, uma alma franciscana lhe atira um osso de costelinha ou de coxa de frango. Na parede da frente, pode ter uma ou várias gaiolas, com canário belga cantador. Antigamente era canário chapinha, curió, coleirinha, trinca-ferro, mas hoje o Ibama e a Florestal não dão trégua.
Bem, as linhas precedentes tentam ser apenas uma crônica divertida do decantadíssimo espaço mais democrático do mundo – o botequim. São observações caricaturais da realidade, algumas vezes propositalmente exageradas, com o objetivo de homenagear essa formidável instituição.
Hoje os bares estão glamurizados pelos concursos de comidas que são típicas das suas cozinhas, infelizmente, invadidas por iguarias que nada têm a ver com as origens destes santuários alcoológicos: trutas, filés de salmão, molhos de gorgonzola, chutneys de manga e de tamarindo, tournedos ao molho de ervas finas, filé de avestruz com coulis de pequi… Resta o consolo: se os bares e botequins perderam em folclore e mística, ganharam em apresentação e visibilidade. Agora estão na vitrine, expostos ao público mais exigente.
Tais certames gastronômicos têm, inegavelmente, seu valor, como estimuladores da convivência; atraem outros indivíduos, de camadas sociais diversas, que jamais freqüentariam um legítimo boteco de bairro, de periferia. Valem pelo incremento ao turismo, pela criação de postos de trabalho, que geram renda, que conduzem à promoção social. Também incentivam o preparo de comida mais saudável, do ponto de vista da higiene, com a adoção das decantadas boas práticas na manipulação de alimentos. Estimulam também os proprietários a adaptar e melhorar suas cozinhas e as instalações sanitárias; essas últimas antes quase impossíveis de serem usadas pelas mulheres, outrora acompanhantes ocasionais dos seus companheiros e amigos mas, hoje, assíduas freqüentadoras.
Muita coisa ainda poderá ser modificada ou acrescentada a estes programas e concursos gastronômicos, desde que não ofusquem a aura do bar, que não destruam o espírito do boteco e que não desvirtuem a alma do botequeiro.
*Álvaro E. R. Falcão de Almeida é professor universitário aposentado e botequeiro militante.
é meu amigo boff.
os nossos amigos do mst não tem essa
moleza não aki é ralação dia a dia.
um abraço.
Você tem certeza que sabe o que um pobre? Você conhece um boteco no Capão Redondo? Boteco com chope , democracia e igualdade social? Aonde? Já ouviu falar em Pitu,Tatuzinho, 3 Fazendas ou Oncinha ? Francamente !!!
Fernando,
Não sou nem de ontem nem de anteontem. Passei minha vida pondo um pé na miseria e outro na teologia. Por 20 anos trabalhei no lixão de Petropolis até transformá-lo num bairro popular. Fui até preso por apoiar ocupações populares que viviam na miséria. Sobre buteco entre no meu blog e leia o Elogio do buteco que foi copiado por centenasde butecos, pés-sujos do Brasil inteiro. Não conheço apenas aquelas caninhas. Conheço muitas outras e recebi já tantas que tenho uma verdaddira coleção. Não é recomendável para vc vir ensinar a missa ao vigario.
lboff