Escolha uma Página

Frei Betto tem comparecido muitas vezes neste blog. É um frade dominicano, teólogo e jornalista mas principalmente um excelente escritor com inúmeros livros de grande repercussão. Passou quatro anos na prisão, junto com confrades dominicanos, no tempo da ditadura militar. Foi preso porque ajudava a pessoas perseguidas pelos órgãos de repressão e ameaçadas de morte a passaram a fronteira para o  Uruguai. Seu livro “Batismo de sangue” transformado em filme é um testemunho comovedor de como viveu a prisão e a tortura dos confrades com a leitura dos evangelhos e da paixão de Cristo que lhe  fez entender o sofrimento humano e a capacidade de exercer o perdão e a misericórdia. Eco desta espiritualidade aparece nessa carta que recebeu de uma mulher estuprada e que teve que fazer aborto para não morrer junto com o bebê e como, não obstante a discriminação sofrida por católicos, pouco cristãos no sentindo de não terem os mesmos sentimentos que Cristo teve e que esta mulher no-los recorda tão bem.Essa carta pode ajudar os leitores e as leitoras a sentirem o drama vivido recentemente pela menina de 10 anos estuprada e também submetida a interrupção da gravidez, dentro das leis do  Estado brasileiro, para salvar a própria vida. Recordemos a frase recente do Papa Francisco:”Prefiro um ateu que tem ética e misericórdia que um católico sem ética e sem misericórdia” E há dias disse mais: “Deus não te ama  porque te comportas bem e basta. Seu amor é incondicional. Não depende de ti”. Dizer isso é ser cristão no seguimento de Jesus. LBoff

CARTA DA NEOCRISTÃ QUE FEZ ABORTO

Frei Betto

Estimado frade,

Tenho 21 anos. Em 2009, com 9 anos de idade, fui submetida a um aborto. Eu tinha 1,35 e menos de 35 quilos. Segundo os médicos, caso a gravidez prosseguisse morreriam eu e o bebê. Agora soube que caso semelhante ocorreu no Espírito Santo. A menina tem 10 anos.

Nossas histórias têm muitas semelhanças. Tanto ela quanto eu fomos estupradas desde os 6 anos de idade. Ela pelo tio; eu, pelo padrasto. E nós duas tivemos uma infância amargada também pela pobreza. Eu não tinha pai, ela não tem mãe. E o pai dela se encontra na prisão.

Indefesas, fomos obrigadas a nos submeter por medo, muito medo. Isso destroçou nossas infâncias. Eu sentia ódio daquele homem que me violentava com frequência. E ele prometia castigar-me severamente caso eu revelasse o que fazia comigo. O medo paralisa, congela, entope a garganta.

Um dia, comecei a passar mal. Nem minha cabeça nem minha mente estava preparada para a maternidade. Fui levada ao hospital, onde o médico fez o aborto.

A Igreja cristã excomungou toda a equipe médica e os nossos familiares, tanto no meu caso quanto no da menina capixaba. Em um país de tradição cristã como o Brasil, isso significa colocar sobre nossas costas mais uma cruz, a de uma mancha indelével. Por isso, cresci com raiva da Igreja: ela me abortou.

Bispos, padres e pastores nos condenaram sem condenarem a situação que nos levaram a tanto descalabro. Por que não condenam as causas da miséria? Nossos estupradores não teriam sido diferentes se tivessem tido escola e emprego? Nossas famílias não teriam cuidado melhor de nós, e nos oferecido uma infância sadia, se não tivessem sido injustamente empurradas para a miséria? Por que nos condenam e não a quem lamenta a ditadura não ter matado 30 mil? Nem a indiferença de quem poderia ter evitado a morte de mais de 100 mil pela Covid-19? Por que não condenam quem defende o linchamento de bandidos ou adota políticas econômicas que aprofundam a desigualdade social e alastram a miséria que sacrificam a infância de tantas crianças?

É covardia condenar pessoas e fechar os olhos às circunstâncias. Alguém pode chegar ao cúmulo do cinismo de achar que, ao longo daqueles anos, sentimos prazer em ser estupradas sob surras e ameaças?

Deus, porém, é imprevisível. Há meses Ele entrou na minha vida. Sinto-me muito amada por Ele. Fui buscar na Bíblia como Jesus teria agido diante de nossos casos. Teria também nos apartado da comunhão com seus discípulos?

Agora leio os Evangelhos com frequência. Entre o que dizem a Igreja e alguns cristãos, e o proceder de Jesus, vejo que não há convergência. Por isso gostaria de ouvir a sua opinião. Não tenho conhecimentos de teologia, mas o amplo apoio que recebi após aquele sofrimento atroz me permitiu sair da miséria, estudar e desfrutar de uma vida digna.

Narra o capítulo 4 do Evangelho de João que, um dia, Jesus encontrou uma mulher samaritana à beira do poço de Jacó. Ela teve cinco maridos e, agora, vivia com um sexto homem com quem não era casada. Se Jesus pensasse como esses bispos, padres e pastores que nos achincalharam ele teria evitado o contato com uma mulher tão promíscua. Teria feito um sermão moralista abominando tamanha rotatividade conjugal. Teria condenado a samaritana ao quinto dos infernos.

Essa gente jamais teria percebido, como Jesus, que ela trazia no coração um buraco tão profundo que só mesmo Deus seria capaz de caber ali dentro. Foi o que ele fez: não a recriminou e ainda a elogiou por falar a verdade! E foi ela a primeira pessoa a quem ele se revelou como Messias. E ao retornar à cidade para anunciar que o havia encontrado, ela se tornou de fato a primeira apóstola.

Jesus também não condenou a mulher adúltera. Ao contrário, fez os seus acusadores, de pedras nas mãos, admitirem que os pecados deles eram maiores que os dela. Jesus não condenou Madalena, que portava “sete espíritos maus”. Acolheu-a, fez dela discípula e a ela concedeu o mérito de ter sido a primeira testemunha da ressurreição.

Não sei se estou certa em meu modo de pensar. Por isso, escrevo ao senhor. Ainda preciso de misericórdia, no sentido etimológico do termo – de gente capaz de postar seu coração junto à miséria alheia.

Deus o abençoe!

X.