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Arthur Soffiati  já conhecido deste blog, um excelente ecologista que vive em
Campos dos Goytacazes- RJ. Ele prima pela simplicidade e clareza dos conceitos. Neste artigo nos ajuda a entender aquilo sobre o qua tanto se fala: a transdisciplinariedade. Oferece vários exemplos que ilustram as maneiras como este conceito é usado. Lboff

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Certos conceitos oriundos das chamadas ciências naturais e sociais têm caráter transdisciplinar, ou seja, podem transitar de um campo do conhecimento a outro, como demonstrou Isabelle Stengers num estudo pouco conhecido entre nós (D’une science à l’autre: des concepts nomades. Paris: Du Seuil, 1987).

O emprego deles numa abordagem transdisciplinar não é ecletismo. Os cientistas sociais, sobretudo, olham de través os pensadores que empregam conceitos de vários campos do conhecimento por entenderem que eles são propriedade de cada campo do saber. O raciocínio transdisciplinar cria um supercampo de conhecimento em que ele se movimenta.

Modo de produção, dasafio-resposta, estratégia e táticas, lugar e risco são conceitos eminentemente transdisciplinares. Com exceção de modo de produção, proposto por Marx, os de desafio-resposta empregado por Toynbee, estratégia e táticas, usado por Michel de Certeau, lugar, do geógrafo Yi-fu Tuan, complexidade, de Edgar Morin, e risco, do sociólogo Ulrich Beck, são conceitos que servem às ciências sociais e às ciências naturais, podendo também viajar no tempo.

Toda sociedade humana vive num modo de produção. As sociedades animais não. Mas todos os viventes respondem a desafios impostos pela natureza ou pela sociedade, externa ou internamente, de acordo com suas capacidades. Todos os seres vivos criam táticas, mesmo os mais simples, para se movimentar dentro dos limites das estratégias impostas pelo forte. Não apenas o ser humano cria lugares, ou seja, transforma o espaço de acordo com suas necessidades. O próprio Tuan rabiscou algumas linhas sobre os lugares criados pelos vivos não-humanos, mas não foi adiante. Sustento que não há espaço vazio na Terra, seja nos oceanos, seja nos continentes, seja na superfície, seja nas profundezas das fossas abissais. Pelo visto, na Lua e em Marte não há lugar. Contudo, as pesquisas mais recentes suspeitam de seres vivos no passado de Marte. Então, houve lugar por lá.

Morin diz que não há sistemas simples e sistemas complexos. O que há é modo simples de abordar a complexidade. Numa entrevista, o conhecido escritor judeu-francês declarou: “Nós, todos os seres humanos, somos animais que preferem as coisas simples. Mas as coisas não são simples. São sempre complexas.” Entre animais e humanos, em todos os tempos, existem riscos. As formigas são bastante organizadas em suas sociedades. A saúva apresenta risco para as lavouras e as formigas de correição africanas e amazonenses apresentam risco para o próprio corpo do ser humano. Contudo, elas correm o risco de serem devoradas por tamanduás, além de outros riscos.

As sociedades paleolíticas eram complexas, contudo menos complexas que as neolíticas e as civilizações. Todas as três enfrentaram e enfrentam riscos provenientes do exterior e do próprio interior. O ataque de animais e de outros grupos humanos representaram riscos para grupos paleolíticos. Os riscos se tornam mais frequentes e mais intensos quanto mais as sociedades se tornam mais complexas.

Dentro do modo de produção feudal, nasceu o modo de produção capitalista, por vota do século XI. Nos primórdios, existiam riscos que podiam inviabilizá-lo. Até mesmo riscos climáticos. Mas havia também oportunidades para seu crescimento. A Peste Negra, no século XIV, pode ter conduzido a um conservadorismo nos costumes e nas artes, mas impulsionou a economia no século seguinte, levando à expansão marítima do mundo europeu. A navegação oferecia vários riscos. Quanto mais as caravelas circulavam, mais o risco de naufrágios. As epidemias que assolaram os povos nativos da América e da Oceania levaram a eles o forte risco de contaminação e morte.

O capitalismo foi se expandindo e enfrentando riscos nesse processo. A guerra entre os países imperialistas era um risco de grande magnitude, assim como a resistência de povos com economia forte, como a China. As crises econômicas, as revoltas e revoluções, as reviravoltas políticas ofereciam riscos à economia capitalista. Pelo entendimento de Toynbee, cada problema enfrentado pelo capitalismo representou um desafio em nível local, regional e mundial, como as duas grandes guerras. Para Edgar Morin, o sistema capitalista tornou-se cada vez mais complexo. Para Certeau, as estratégias quase intransponíveis impostas pelos fortes levaram os fracos a desenhar itinerários também complexos de sobrevivência.

Agora, o grande desafio, o grande risco enfrentando pela hipercomplexa economia capitalista globalizada é a grande pandemia causada pelo Covid-19. Não se podia prever com certeza que a humanidade seria surpreendida por uma pandemia, mas ela não podia ser descartada, assim como os efeitos mais profundos das mudanças climáticas e dos regimes populistas reacionários. Num modo de produção como o capitalista em fase de alta complexidade; nos lugares que ele cria, deve-se contar com a imprevisibilidade e a incerteza, com desafios fortes e com riscos que podem emergir do todos os cantos.